Patricia Karina Vergara
(feminista mexicana, lésbica feminista radical autônoma, gorda, indígena, mãe de uma filha)
Não é muito popular ser a “chata do rolê” que reclama sobre o consumismo na época das festas natalinas, enquanto o resto da comunidade toda está pendurando luzinhas pisca-pisca, montando a árvore de Natal e cantando musiquinhas típicas. A mesma impopularidade e incômodo com minhas interlocutoras encontro toda vez que abro a boca para problematizar a estrutura consumista em que está submergida a comunidade LGBTQetc: o modelo do antro/gueto, o embrutecimento com álcool, a sexualidade coisificada e coisificante e o abuso de drogas. Porém, minha preocupação pessoal e concreta se refere especificamente ao que me toca: as lésbicas, a restrição das nossas vivências lésbicas à logica dos bares/festas/”rolê” que vem predominando em nossa comunidade.
Antes de qualquer coisa, reforço aqui que eu não sou contra festas nem as detesto, nem tampouco os bares, nem as bebidas alcoólicas, nem tampouco a socialização que ocorre nesses ambientes. Mil vezes eu venho aceitando com prazer convites para uma cerveja com amigas, uma ou muitas doses, fui organizadora de festas, fui e sou frequentadora de algumas. Acredito no exercício sexual livre, sempre e quando seja responsável e consensual. Inclusive, conheço e respeito o uso de substâncias que levam a estados alterados de consciência com fins rituais, recreativos, espirituais, de busca ou simplesmente experimentais.
Reconheço – ora como não? – a necessidade de espaços de convivência, encontro, e de celebração para esta comunidade. Porém, isso que escrevo é um chamado a nos perguntarmos, desde o fazer lésbico politizado, sobre o que está por trás das relações e organização, interação das lésbicas, sempre em torno desta forma mercantil de socialização/alienação [1]. Por exemplo, questionamos nossas relações íntimas e criticamos duramente a reprodução do modelo heterossexual onde, lamentavelmente, há quem assume o papel dominante e outra que aceita o papel de submetida e se repetem as hierarquias já conhecidas.[2] Como resposta, as lésbicas somos capazes de criticar, contribuir, e encontramos que não necessariamente temos por quê imitar tal modelo. Também podemos questionar e reconstruir as formas em que nos relacionamos como comunidade, de nos divertirmos ou dos espaços de ócio e a partir da reflexão crítica, fazer estremecer o modelo pré-fabricado, capitalista, patriarcal, que nos deram.
Podemos estabelecer, para começar, que o submergir na mercadotecnia da diversidade e da lógica de nicho mercadológico, que nos aliena, ou seja, nos distancia uma das outras e de nós mesmas e impede a busca de objetivos comuns. Nos submetemos a imposição patriarcal de valores e, em meio a este submundo, competimos para ver quem tem mais fama, beleza física, quem tem mais encontros ou conquistas sexuais, quem pegou mais minas, quem tem mais likes, quem bebe mais, quem tem melhores bens de consumo, quem tem melhor visual, quem é mais que quem…
Claro que isso ocorre também nos ambientes homossexuais, heterossexuais e em geral. E também valeria a pena a discussão a respeito disso. Porém, ao nos focar em falar das lésbicas, seria bom pensarmos nas oportunidades valiosas que nos estamos negando. Que aconteceria se jogássemos a cultura de imagem e a mercantilização no cesto de lixo e pudéssemos começar a nos perceber entre nós mesmas como aliadas, nos aproximar, nos convidar a refletir em conjunto, nos apreciar por nossos valores intrínsecos e quem sabe, talvez poder nos organizar em ações articuladas, por exemplo, para apoiar aquelas que foram expulsas de casa, que estão em situação de risco, para exigir justiça jurídica, apoiar àquela que precisa de nossa ajuda, criar grupos de trabalho intelectual, artístico ou político que hoje certamente em México existem apenas alguns pouquíssimos, ou simplesmente, para refletir sobre nossas existências lésbicas, celebrar, criar cultura, comunidade, preservar nossas memórias, recitar poesias, cantar, nos cuidar umas entre as outras.
Não se trata simplesmente de uma proposta utópica e sonhadora, senão que é um convite para começarmos a buscar opções alternativas de vida e de ação tanto política como cotidiana daquelas que nos foram dadas. O fenômeno da geração que hoje vive é o da era do desencanto. Do pessimismo, da descrença em processos coletivos ou políticos. As grandes teorias transformadoras parecem ter ficado no século passado. Idéias de transformação social são tachadas pelo sistema como coisas ultrapassadas, a militância política parece ‘careta’ demais. Parece muito distante ou impossível a promessa de uma ordem social mais justa. O Capitalismo parece ter triunfado de uma forma nunca antes vista, o monopólio de toda violência por parte do Estado e seus aparatos repressivos torna qualquer rebeldia meramente pictórica, a vigilância sobre nossas vidas reduz nossa manifestação política a expressão cidadã tímida, a revolta está cercada pelo sistema, monitorada, contida. E a política também é assimilada pela estratégia consumista e festiva, de “rolê” e subcultura urbana.
Para as mulheres a quem tivemos negados nossas contribuições pelos livros de história, afastadas sistematicamente do poder e despojadas de nós mesmas, o vazio é maior. E assim, respiramos diariamente o desencanto, cinismo, falta de solidariedade/sororidade umas com as outras. De tal modo que as únicas duas premissas possíveis são as impostas desde o Poder: o valor do dinheiro como fonte de toda satisfação e o embotamento dos sentidos. O valor da imagem e do consumo.
Como a ordem econômica estabelecida garante que o dinheiro e suas possibilidades são inacessíveis para a maioria, então nos voltamos para a segunda premissa: apostamos à evasão contra toda e qualquer ação política, ao desprezo por qualquer militância e jogamos a não olhar, a nos conformarmos com o que há.
Quando a ansiedade psíquica, a insatisfação ou a solidão começam a pesar muito, uma das possíveis saídas é ir gastar 30 conto em umas cervejas e acreditar que é melhor isso que nos questionar o por quê de não haver outros espaços, outras práticas, e outros serviços, outras lógicas, talvez desde a economia sororária e de troca, feiras lésbicas autogestivas para expormos nossos trampos. Enfim, encontrar opções de lazer que não passem pelo consumo, ou inventá-los nós mesmas. Preferimos não ver a violência que nos cerca ou nos conformar com saber que sempre esteve aí, ao invés de tomar responsabilidade sobre nossas vidas e começar a fazer, a propôr, a transformar no imediato.
Temos que aprender a reconhecer que o poder de comprar um brinquedo sexual, ver um filme pornô, ou a possibilidade de ficar com alguém em uma festa e terminar na cama sem conhecer sequer seu nome não são reivindicações nem constituem nenhuma libertação sexual, mas sim, ao contrário, formas efetivas que os empresários encontraram para comercializar nossa sexualidade e lucrar – eles, homens brancos, patriarcas, heterossexuais muitas vezes – com nossa comunidade. [3] E que por outro lado, nos expôem a riscos como transmissão de DSTs. [4]
As vezes parece que o movimento lésbico tem por única demanda política que não fechem o bar onde se amontoam a juventude gay aos domingos. E na miopia dos exemplos anteriores ficamos tomando uma cervejinha enquanto decidimos quem vamos pegar hoje e ‘secamos’ o ambiente em busca da ‘caça do dia’. Assim, uma multidão de lesbianas que podiam ser forças transformadoras, se convertem em um mercado adestrado rentável pro Capital e nada mais. Onde fica o potencial rebelde, questionador, crítico, da lesbianidade?
São os negócios em geral, bares, botecos, baladas, ou a sua lógica transferida à socialização lésbica da mercantilização da diversidade sexual. Da assimilação da potência rebelde da condição política de ser lésbica. É novamente a idéia de que somos identidade/orientação/prática sexual e nada mais. Estes artifícios do sistema são meios efetivos de despolitização a serviço da ordem atual. Se fossem contestatários ou se sua existência tivesse um peso político de importância, como os empresários pretendem nos fazer acreditar, então sua existência estaria agora ameaçada [5]: esses espaços seriam perseguidos, boicotados, sabotados, caluniados, atacados e não tão facilmente existiriam em número crescente. O ‘mercado rosa‘ [6] tem um peso econômico e seu interesse político não é o da transformação. Se existisse uma mudança política, jurídica, e social, ou seja, se não houvesse heterossexismo, já não seriam necessários bares, viagens turísticas, revistas especializadas, sexshops, baladas, boates, bares. Terminada a necessidade de espaços exclusivos gays, se acaba a galinha dos ovos de ouro pros capitalistas interessados neste setor. Por isso, essas empresas são, servindo a seus próprios interesses, um meio efetivo de controle social e nada mais. A lógica de consumo importada dessas comunidades, reproduzida dentro das nossas relações lésbicas, é uma colonização capitalista e patriarcal que serve meramente como forma de amaciar nossa rebeldia, de controle da radicalidade lésbica.
Não se trata de censurar ninguém nem de se colocar como guardiãs da boa moral e dos bons constumes. É uma questão de pensar: quais são nossas éticas lésbicas? Uma questão de rebeldia e de sonho de novos valores, formas de nos relacionar, onde o consumismo, a redução da nossa socialização ao álcool, ao entorpecimento por meio de drogas, o consumo de corpos e a apatia política não fossem uma realidade cotidiana que passa a muitas de nós. É possível, muito possível,que seja de outra forma isso tudo. É possível espaços diferentes, rebeldes ao Capital, ao Estado, ao HeteroPatriarcado, de interação genuína entre nós em bases saudáveis e de potência criativa. Se as lésbicas somos humanas, uma vez capazes de ter rompido com a ordem da Heterossexualidade que nos foi enfiada desde pequenininhas, e nos atrevemos a amar e erotizar mulheres à nossa maneira e desde outros princípios, por que não poderíamos nos atrever a retomar para nós a responsabilidade de criar autonomamente, nós mesmas, nosso próprio espaço lúdico e de encontro, tomando ele da ordem existente que nos submete, explora, e deixando de aceitar e meramente consumir o que nos colocam?
Façamos um dia de ida ao campo, ao parque, com frutas e comidas veganas deliciosas feitas em casa, compartilhando, reunamos 200 lésbicas para pintar um mural, um grafitasso, que fale sobre a gente, lancemos bolas de sabão ao céu desde uma árvore nada mais que pela alegria de nos encontrar e de fazer coisas e estarmos vivas. Levemos nossas filhas e filhos a um passeio para ir retomando as consciências coletivas, construamos uma escola rural entre todas, vamos nadar, ensinemo-nos umas as outras a consertar carro, computadores,eletricidade, a andar de skate, bicicleta, e o que mais quisermos. É possível, eu acredito nisso, nos encontrarmos, construirmos, criarmos identidade desde uma história distinta à que nos foi contada, desde uma herstória [7] escrita em tinta própria. Por quê não nos atrevermos?
***
*Na verdade o artigo original se chamava “Ética e Bons Costumes”, mas como achei que esse título não seria atrativo para a questão central que aborda e problematiza, além de que poderia levar a confusões, eu estou constando aqui nesta nota de rodapé que mudei deliberadamente. [N.T.]
A tradução foi livremente adaptada, pois o contexto mexicano é outro, as idéias foram traduzidas para ficarem mais inteligiveis e dialogarem com nosso contexto e momento no feminismo e comunidade lésbica.
[1] A autora não usa o termo ‘alienação’ no sentido de consciência alienada, como a pessoa desinformada ou ‘ignorante’, mas no sentido de isolamento, de restrição, de redução a um ‘cantinho’ tímido e silencioso, que o sistema faz com esta comunidade, que termina também por separá-la, assim como quando fala do gueto e antro, é sobre como a estrutura heterossexista consegue nos isolar num cantinho pouco ameaçador, nos enfiando num ‘nicho’ de mercado, em entretenimento, de modo a não incomodar, e como assim também nos afasta do nosso potencial rebelde, pois entretêm essa comunidade oprimida com lazer, entorpece (bebidas, consumo, consumo de corpos), e assim a mantêm distraída e ilusoriamente satisfeita ou contente, também tapando a dor da opressão. O sistema capitalista na verdade faz isso com todas pessoas, trabalhadores, e todas minorias rebeldes, transforma em identidades e provêm produtos específicos. Nisso tá imerso o próprio feminismo entendido agora como um “rolê”, onde você pode até mesmo comprar sua camisetinha, bottom e os eventos políticos são entendidos como entretenimento. O desinteresse de lésbicas por fazer política e a totalidade do tempo ‘livre’ retomado pelo Capital, que nos explora todos os dias e no final de semana ainda lucra com nosso descanso pois resumimos nosso momento de não-escrav@s a consumir produtos, o interesse unicamente de exercício da lesbiandade como sexualidade, a socialização lésbica e até mesmo feminista em torno de consumo de corpos e rostos bonitos, de saídas para consumir… Não que não seja importante a vivência dos prazeres, da nossa sexualidade, a celebração, os afetos, as amizades, nem a descontração… mas a compulsão pelo prazer consumista e o resumir da lesbiandade a isso, o interesse das lésbicas unicamente em eventos de entretenimento e não de reflexão, é muito obviamente uma assimilação das lésbicas à lógica de mercado, e a retirada da potência criativa e radical, e de vivência de prazeres e socialização por fora da lógica mercantilizadora e da sexualidade lésbika por fora da sexualidade coisificadora.
[2] Nota da tradutora: não gosto muito da crítica aos papéis Butch e Femme, acho meio duro com lésbicas, acho que a crítica a relações que não são equilibradas em poder é ok, mas a crítica a estética que adotam eu acho lesbofóbica, até porque não depende de voluntarismo mas sim de programação, de socialização feminina ou resistência a essa socialização, que são ambos processos de sobrevivência num Patriarcado.
[3] Por que não estaria o facebook também ligado a isso, se é uma empresa que lucra com nossa participação nela? Qual o lucro que os empresários do facebook, homens, seu inventor, um homem agressor, possuem, estando hoje milionários, ao fomentar nessa plataforma que foi desenhada pra promover hostilidade horizontal e violência, comas diversas ‘tretas’ (mesmo mecanismo do ‘ibope’ televisivo, quando tem uma treta, mais acessos, mais dinheiro rolando) e agressividade entre feministas, fofocas,difamações, exposições… O que não lucram com a exposição de nossas vidas íntimas, nossas fotos, transformando-as num espetáculo público? Qual interesse dos empresários do facebook em fomentar feminismo e lesbianidade da forma que vemos vendo nessas redes, deforma desconstrutiva, hostil, e assimilar radicalidade à lógica da exposição e das guerras de egos? Enquanto as feministas e lésbicas se destróem entre si, os empresários do facebook estão cada dia mais milionários, e estão ‘pouco se fodendo’ para feministas ou mudanças sociais. [N.T.]
[4] Este parágrafo parece mais uma crítica ao queer e a logica LGBT de liberalismo sexual, mas que creio que as lésbicas também reproduzem e trouxeram dessa comunidade de algum modo, ao meramente enxergar os espaços de socialização lésbicos como de pegação e essa ansiedade por vivências sexuais compulsivas, que a mim me remete a sexualidade patriarcal por ser uma questão de auto-estima relacionada à quantas conquistas tive, com quem fiquei, como se outras mulheres fossem um troféu. E claro, um consumo de aparência,que leva a reprodução de padrões estéticos racistas, gordofóbicos, elitistas, muitas vezes. [N.T.]
[5] Como o estão os espaços lésbicos radicais, que nem espaço para reunião possuem, sendo sempre uma dificuldade encontrar portas abertas às nossas propostas ou um espaço tranquilo sem intromissão constante de homens como nos mostra a experiência de reuniões em espaços abertos ‘públicos’, que na verdade são dominados por machos. [N.T.]
[6] Nome dado ao mercado ‘gay’. O poder de compra de homens gays, interessante pro capitalismo, e o por que da militância LGBT ter um status de hegemonia e as paradas gays tanto financiamento.
Comentário final: A idéia deste artigo não é ignorar as questões de solidão lésbica que levam a termos que procurar os ambientes de consumo para encontrar iguais, mas de questionar o por quê de não retomarmos em nossas mãos o papel de criar espaços realmente radicalmente rebeldes e lesbikos à ordem patriarcal, já que creio eu que sempre que a lesbiandade é assimilada por essas estruturas opressivas e exploradoras, nos heterossexualizam de algum modo.
Também a idéia não é ignorar que as vidas lésbicas são já muito difíceis e duras e que o único que uma lésbica quer, muitas vezes, é sair tomar uma cerveja, relaxar, ir pra uma festa, coisa que a comentadora deste texto também faz, que muitas lésbicas possuem unicamente um ou dois dias da semana livres que não ocuparia com militância, a idéia é trazer uma reflexão e pensar em como reinventar nossas vidas reconhecendo também que estamos tão programadas pelo capitalismo a sermos mercado consumidor que muitas vezes nem percebemos o quanto isso vem definindo as nossas relações umas com as outras [N.T.]
terra lesbika