As Marginais

por Rafaela Rosa

Adentrar a madrugada ao lado delas, sentir o peso das pálpebras e dormir no quase nascer do sol com um sorriso nos lábios, ao lado delas.
Ver o sol dividir o céu com a lua por detrás dos arranha-céus ao lado dela.
Falar sobre elas, sentir o arrepio na pele pelo toque delas, sentir a solidão ir embora, escorrendo pelos bueiros imundos da cidade dos homens. Não ter medo, sentir-se em casa, sorrir tranquila, ao lado delas.
Olhe fundo nos meus olhos, eu estou contigo. Estamos de mãos dadas, de dedos entrelaçados, no vão do mundo!
Eu entendo sua urgência, eu também a sinto pulsando por todo meu corpo. Eu entendo seu pedido de socorro, o suor nas mãos, a solidão também me corroe, me corrompe.
Não é mais preciso se esconder quando estamos juntas, podemos soltar todo o grito contido, podemos expor nossas feridas e cuidar delas, eu da sua, você da minha, ela da sua, eu da dela, eu da minha, você da sua, ela da dela…
Não estamos felizes juntas, felicidade não cabe quando se carrega nas costas o peso da violência de toda uma vida, estamos seguras e fortalecidas, estamos conectadas, e dividir o peso pode ser razão de mais um dia viva.
Eu estive com elas, estive com as dores delas, estive inebriada pela beleza delas, pelos corpos que sangram, pelas almas que sangram, pelos olhos que sangram.
Eu sou elas, das mãos grandes, das mãos pequenas, do corpo miúdo, do corpo alongado, dos cabelos curtos, dos cabelos longos, dos não-cabelos, da luta!
Lésbicas, elas são as lésbicas, eu sou a lésbica, somos essa palavra que não se diz, somos a solidão, as marginais, a sapatão!
E é com elas que eu quero estar, é por elas que eu quero estar.
Me dê sua mão, se você cair eu te ergo! ( assim como vocês me ergueram ontem)

punkAs

para ver mais trabalhos da Rafaela Rosa, visite http://pornofonica.blogspot.com.br/

A Mercantilização da Comunidade Lésbica*

Patricia Karina Vergara
(feminista mexicana, lésbica feminista radical autônoma, gorda, indígena, mãe de uma filha)
tradução livre por hembrista@riseup.net
 SORORIDADE

 

Não é muito popular ser a “chata do rolê” que reclama sobre o consumismo na época das festas natalinas, enquanto o resto da comunidade toda está pendurando luzinhas pisca-pisca, montando a árvore de Natal e cantando musiquinhas típicas. A mesma impopularidade e incômodo com minhas interlocutoras encontro toda vez que abro a boca para problematizar a estrutura consumista em que está submergida a comunidade LGBTQetc: o modelo do antro/gueto, o embrutecimento com álcool, a sexualidade coisificada e coisificante e o abuso de drogas. Porém, minha preocupação pessoal e concreta se refere especificamente ao que me toca: as lésbicas, a restrição das nossas vivências lésbicas à logica dos bares/festas/”rolê” que vem predominando em nossa comunidade.

 

Antes de qualquer coisa, reforço aqui que eu não sou contra festas nem as detesto, nem tampouco os bares, nem as bebidas alcoólicas, nem tampouco a socialização que ocorre nesses ambientes. Mil vezes eu venho aceitando com prazer convites para uma cerveja com amigas, uma ou muitas doses, fui organizadora de festas, fui e sou frequentadora de algumas. Acredito no exercício sexual livre, sempre e quando seja responsável e consensual. Inclusive, conheço e respeito o uso de substâncias que levam a estados alterados de consciência com fins rituais, recreativos, espirituais, de busca ou simplesmente experimentais.
Reconheço – ora como não? –  a necessidade de espaços de convivência, encontro, e de celebração para esta comunidade. Porém, isso que escrevo é um chamado a nos perguntarmos, desde o fazer lésbico politizado, sobre o que está por trás das relações e organização, interação das lésbicas, sempre em torno desta forma mercantil de socialização/alienação [1]. Por exemplo, questionamos nossas relações íntimas e criticamos duramente a reprodução do modelo heterossexual onde, lamentavelmente, há quem assume o papel dominante e outra que aceita o papel de submetida e se repetem as hierarquias já conhecidas.[2] Como resposta, as lésbicas somos capazes de criticar, contribuir, e encontramos que não necessariamente temos por quê imitar tal modelo. Também podemos questionar e reconstruir as formas em que nos relacionamos como comunidade, de nos divertirmos ou dos espaços de ócio e a partir da reflexão crítica, fazer estremecer o modelo pré-fabricado, capitalista, patriarcal, que nos deram.
Podemos estabelecer, para começar, que o submergir na mercadotecnia da diversidade e da lógica de nicho mercadológico, que nos aliena, ou seja, nos distancia uma das outras e de nós mesmas e impede a busca de objetivos comuns. Nos submetemos a imposição patriarcal de valores e, em meio a este submundo, competimos para ver quem tem mais fama, beleza física, quem tem mais encontros ou conquistas sexuais, quem pegou mais minas, quem tem mais likes, quem bebe mais, quem tem melhores bens de consumo, quem tem melhor visual, quem é mais que quem…

 

Claro que isso ocorre também nos ambientes homossexuais, heterossexuais e em geral. E também valeria a pena a discussão a respeito disso. Porém, ao nos focar em falar das lésbicas, seria bom pensarmos nas oportunidades valiosas que nos estamos negando. Que aconteceria se jogássemos a cultura de imagem e a mercantilização no cesto de lixo e pudéssemos começar a nos perceber entre nós mesmas como aliadas, nos aproximar, nos convidar a refletir em conjunto, nos apreciar por nossos valores intrínsecos e quem sabe, talvez poder nos organizar em ações articuladas, por exemplo, para apoiar aquelas que foram expulsas de casa, que estão em situação de risco, para exigir justiça jurídica, apoiar àquela que precisa de nossa ajuda, criar grupos de trabalho intelectual, artístico ou político que hoje certamente em México existem apenas alguns pouquíssimos, ou simplesmente, para refletir sobre nossas existências lésbicas, celebrar, criar cultura, comunidade, preservar nossas memórias, recitar poesias, cantar, nos cuidar umas entre as outras.

 

Não se trata simplesmente de uma proposta utópica e sonhadora, senão que é um convite para começarmos a buscar opções alternativas de vida e de ação tanto política como cotidiana daquelas que nos foram dadas. O fenômeno da geração que hoje vive é o da era do desencanto. Do pessimismo, da descrença em processos coletivos ou políticos. As grandes teorias transformadoras parecem ter ficado no século passado. Idéias de transformação social são tachadas pelo sistema como coisas ultrapassadas, a militância política parece ‘careta’ demais. Parece muito distante ou impossível a promessa de uma ordem social mais justa. O Capitalismo parece ter triunfado de uma forma nunca antes vista, o monopólio de toda violência por parte do Estado e seus aparatos repressivos torna qualquer rebeldia meramente pictórica, a vigilância sobre nossas vidas reduz nossa manifestação política a expressão cidadã tímida, a revolta está cercada pelo sistema, monitorada, contida. E a política também é assimilada pela estratégia consumista e festiva, de “rolê” e subcultura urbana.

 

Para as mulheres a quem tivemos negados nossas contribuições pelos livros de história, afastadas sistematicamente do poder e despojadas de nós mesmas, o vazio é maior. E assim, respiramos diariamente o desencanto, cinismo, falta de solidariedade/sororidade umas  com as outras. De tal modo que as únicas duas premissas possíveis são as impostas desde o Poder: o valor do dinheiro como fonte de toda satisfação e o embotamento dos sentidos. O valor da imagem e do consumo.

 

Como a ordem econômica estabelecida garante que o dinheiro e suas possibilidades são inacessíveis para a maioria, então nos voltamos para a segunda premissa: apostamos à evasão contra toda e qualquer ação política, ao desprezo por qualquer militância e jogamos a não olhar, a nos conformarmos com o que há.

 

Quando a ansiedade psíquica, a insatisfação ou a solidão começam a pesar muito, uma das possíveis saídas é ir gastar 30 conto em umas cervejas e acreditar que é melhor isso que nos questionar o por quê de não haver outros espaços, outras práticas, e outros serviços, outras lógicas, talvez desde a economia sororária e de troca, feiras lésbicas autogestivas para expormos nossos trampos. Enfim, encontrar opções de lazer que não passem pelo consumo, ou inventá-los nós mesmas. Preferimos não ver a violência que nos cerca ou nos conformar com saber que sempre esteve aí, ao invés de tomar responsabilidade sobre nossas vidas e começar a fazer, a propôr, a transformar no imediato.

 

Temos que aprender a reconhecer que o poder de comprar um brinquedo sexual, ver um filme pornô, ou a possibilidade de ficar com alguém em uma festa e terminar na cama sem conhecer sequer seu nome não são reivindicações nem constituem nenhuma libertação sexual, mas sim, ao contrário, formas efetivas que os empresários encontraram para comercializar nossa sexualidade e lucrar – eles, homens brancos, patriarcas, heterossexuais muitas vezes – com nossa comunidade. [3] E que por outro lado, nos expôem a riscos como transmissão de DSTs. [4]

 

As vezes parece que o movimento lésbico tem por única demanda política que não fechem o bar onde se amontoam a juventude gay aos domingos. E na miopia dos exemplos anteriores ficamos tomando uma cervejinha enquanto decidimos quem vamos pegar hoje e ‘secamos’ o ambiente em busca da ‘caça do dia’. Assim, uma multidão de lesbianas que podiam ser forças transformadoras, se convertem em um mercado adestrado rentável pro Capital e nada mais. Onde fica o potencial rebelde, questionador, crítico, da lesbianidade?
São os negócios em geral, bares, botecos, baladas, ou a sua lógica transferida à socialização lésbica da mercantilização da diversidade sexual. Da assimilação da potência rebelde da condição política de ser lésbica. É novamente a idéia de que somos identidade/orientação/prática sexual e nada mais. Estes artifícios do sistema são meios efetivos de despolitização a serviço da ordem atual. Se fossem contestatários ou se sua existência tivesse um peso político de importância, como os empresários pretendem nos fazer acreditar, então sua existência estaria agora ameaçada [5]: esses espaços seriam perseguidos, boicotados, sabotados, caluniados, atacados e não tão facilmente existiriam em número crescente. O ‘mercado rosa‘ [6] tem um peso econômico e seu interesse político não é o da transformação. Se existisse uma mudança política, jurídica, e social, ou seja, se não houvesse heterossexismo, já não seriam necessários bares, viagens turísticas, revistas especializadas, sexshops, baladas, boates, bares. Terminada a necessidade de espaços exclusivos gays, se acaba a galinha dos ovos de ouro pros capitalistas interessados neste setor. Por isso, essas empresas são, servindo a seus próprios interesses, um meio efetivo de controle social e nada mais. A lógica de consumo importada dessas comunidades, reproduzida dentro das nossas relações lésbicas, é uma colonização capitalista e patriarcal que serve meramente como forma de amaciar nossa rebeldia, de controle da radicalidade lésbica.

 

Não se trata de censurar ninguém nem de se colocar como guardiãs da boa moral e dos bons constumes. É uma questão de pensar: quais são nossas éticas lésbicas? Uma questão de rebeldia e de sonho de novos valores, formas de nos relacionar, onde o consumismo, a redução da nossa socialização ao álcool, ao entorpecimento por meio de drogas, o consumo de corpos e a apatia política não fossem uma realidade cotidiana que passa a muitas de nós. É possível, muito possível,que seja de outra forma isso tudo. É possível espaços diferentes, rebeldes ao Capital, ao Estado, ao HeteroPatriarcado, de interação genuína entre nós em bases saudáveis e de potência criativa. Se as lésbicas somos humanas, uma vez capazes de ter rompido com a ordem da Heterossexualidade que nos foi enfiada desde pequenininhas, e nos atrevemos a amar e erotizar mulheres à nossa maneira e desde outros princípios, por que não poderíamos nos atrever a retomar para nós a responsabilidade de criar autonomamente, nós mesmas, nosso próprio espaço lúdico e de encontro, tomando ele da ordem existente que nos submete, explora, e deixando de aceitar e meramente consumir o que nos colocam?

 

Façamos um dia de ida ao campo, ao parque, com frutas e comidas veganas deliciosas feitas em casa, compartilhando, reunamos 200 lésbicas para pintar um mural, um grafitasso, que fale sobre a gente, lancemos bolas de sabão ao céu desde uma árvore nada mais que pela alegria de nos encontrar e de fazer coisas e estarmos vivas. Levemos nossas filhas e filhos a um passeio para ir retomando as consciências coletivas, construamos uma escola rural entre todas, vamos nadar, ensinemo-nos umas as outras a consertar carro, computadores,eletricidade, a andar de skate, bicicleta, e o que mais quisermos. É possível, eu acredito nisso, nos encontrarmos, construirmos, criarmos identidade desde uma história distinta à que nos foi contada, desde uma herstória [7] escrita em tinta própria. Por quê não nos atrevermos?

 

***

 

*Na verdade o artigo original se chamava “Ética e Bons Costumes”, mas como achei que esse título não seria atrativo para a questão central que aborda e problematiza, além de que poderia levar a confusões, eu estou constando aqui nesta nota de rodapé que mudei deliberadamente. [N.T.]
A tradução foi  livremente adaptada, pois o contexto mexicano é outro, as idéias foram traduzidas para ficarem mais inteligiveis e dialogarem com nosso contexto e momento no feminismo e comunidade lésbica.

 

[1] A autora não usa o termo ‘alienação’ no sentido de consciência alienada, como a pessoa desinformada ou ‘ignorante’, mas no sentido de isolamento, de restrição, de redução a um ‘cantinho’ tímido e silencioso, que o sistema faz com esta comunidade, que termina também por separá-la, assim como quando fala do gueto e antro, é sobre como a estrutura heterossexista consegue nos isolar num cantinho pouco ameaçador, nos enfiando num ‘nicho’ de mercado, em entretenimento, de modo a não incomodar, e como assim também nos afasta do nosso potencial rebelde, pois entretêm essa comunidade oprimida com lazer, entorpece (bebidas, consumo, consumo de corpos), e assim a mantêm distraída e ilusoriamente satisfeita ou contente, também tapando a dor da opressão. O sistema capitalista na verdade faz isso com todas pessoas, trabalhadores, e todas minorias rebeldes, transforma em identidades e provêm produtos específicos. Nisso tá imerso o próprio feminismo entendido agora como um “rolê”, onde você pode até mesmo comprar sua camisetinha, bottom e os eventos políticos são entendidos como entretenimento. O desinteresse de lésbicas por fazer política e a totalidade do tempo ‘livre’ retomado pelo Capital, que nos explora todos os dias e no final de semana ainda lucra com nosso descanso pois resumimos nosso momento de não-escrav@s a consumir produtos, o interesse unicamente de exercício da lesbiandade como sexualidade, a socialização lésbica  e até mesmo feminista em torno de consumo de corpos e rostos bonitos, de saídas para consumir… Não que não seja importante a vivência dos prazeres, da nossa sexualidade, a celebração, os afetos, as amizades, nem a descontração… mas a compulsão pelo prazer consumista e o resumir da lesbiandade a isso, o interesse das lésbicas unicamente em eventos de entretenimento e não de reflexão, é muito obviamente uma assimilação das lésbicas à lógica de mercado, e a retirada da potência criativa e radical, e de vivência de prazeres e socialização por fora da lógica mercantilizadora e da sexualidade lésbika  por fora da sexualidade coisificadora. 

[2] Nota da tradutora: não gosto muito da crítica aos papéis Butch e Femme, acho meio duro com lésbicas, acho que a crítica a relações que não são equilibradas em poder é ok, mas a crítica a estética que adotam eu acho lesbofóbica, até porque não depende de voluntarismo mas sim de programação, de socialização feminina ou resistência a essa socialização, que são ambos processos de sobrevivência num Patriarcado.

[3] Por que não estaria o facebook também ligado a isso, se é uma empresa que lucra com nossa participação nela? Qual o lucro que os empresários do facebook, homens, seu inventor, um homem agressor, possuem, estando hoje milionários, ao fomentar nessa plataforma que foi desenhada pra promover hostilidade horizontal e violência, comas diversas ‘tretas’ (mesmo mecanismo do ‘ibope’ televisivo, quando tem uma treta, mais acessos, mais dinheiro rolando) e agressividade entre feministas, fofocas,difamações, exposições… O que não lucram com a exposição de nossas vidas íntimas, nossas fotos, transformando-as num espetáculo público? Qual interesse dos empresários do facebook em fomentar feminismo e lesbianidade da forma que vemos vendo nessas redes, deforma desconstrutiva, hostil, e assimilar radicalidade à lógica da exposição e das guerras de egos? Enquanto as feministas e lésbicas se destróem entre si, os empresários do facebook estão cada dia mais milionários, e estão ‘pouco se fodendo’ para feministas ou mudanças sociais. [N.T.] 

[4] Este parágrafo parece mais uma crítica ao queer e a logica LGBT de liberalismo sexual, mas que creio que as lésbicas também reproduzem e trouxeram dessa comunidade de algum modo, ao meramente enxergar os espaços de socialização lésbicos como de pegação e essa ansiedade por vivências sexuais compulsivas, que a mim me remete a sexualidade patriarcal por ser uma questão de auto-estima relacionada à quantas conquistas tive, com quem fiquei, como se outras mulheres fossem um troféu. E claro, um consumo de aparência,que leva a reprodução de padrões estéticos racistas, gordofóbicos, elitistas, muitas vezes. [N.T.] 

 [5] Como o estão os espaços lésbicos radicais, que nem espaço para reunião possuem, sendo sempre uma dificuldade encontrar portas abertas às nossas propostas ou um espaço tranquilo sem intromissão constante de homens como nos mostra a experiência de reuniões em espaços abertos ‘públicos’, que na verdade são dominados por machos. [N.T.]

[6] Nome dado ao mercado ‘gay’. O poder de compra de homens gays, interessante pro capitalismo, e o por que da militância LGBT ter um status de hegemonia e as paradas gays tanto financiamento. 

Comentário final: A idéia deste artigo não é ignorar as questões de solidão lésbica que levam a termos que procurar os ambientes de consumo para encontrar iguais, mas de questionar o por quê de não retomarmos em nossas mãos o papel de criar espaços realmente radicalmente rebeldes e lesbikos à ordem patriarcal, já que creio eu que sempre que a lesbiandade é assimilada por essas estruturas opressivas e exploradoras, nos heterossexualizam de algum modo. 
 

Também a idéia não é ignorar que as vidas lésbicas são já muito difíceis e duras e que o único que uma lésbica quer, muitas vezes, é sair tomar uma cerveja, relaxar, ir pra uma festa, coisa que a comentadora deste texto também faz, que muitas lésbicas possuem unicamente um ou dois dias da semana livres que não ocuparia com militância, a idéia é trazer uma reflexão e pensar em como reinventar nossas vidas reconhecendo também que estamos tão programadas pelo capitalismo a sermos mercado consumidor que muitas vezes nem percebemos o quanto isso vem definindo as nossas relações umas com as outras [N.T.]

terra lesbika

terra lesbika

 

Por que você quis ser lésbica?

“Ai a pessoa tem a pachorra de me perguntar isso. Por que eu quis ser lésbica? O verbo no passado nem faz sentido. Eu escolho todos os dias ser lésbica, eu quero ser lésbica, eu quis, eu quererei no futuro. Eu quero ser lésbica porque eu me amo, eu quero ser lésbica porque eu sou livre e quero ser livre, eu quero ser lésbica porque eu estou viva VIVA e não morta e petrificada, eu quero ser lésbica porque eu amo outras lésbica que assim como eu estão VIVAS, eu quero ser lésbica porque eu quero ser visível pra mulheres e quero que elas saibam que também podem ser lésbicas.”

–  Mona

feminismo é sobre a igualdade entre mulheres

Feminismo, para mim, nunca significou a igualdade entre homens e mulheres. Significou e significa a igualdade entre Nós – tornar-se semelhante àquelas mulheres que foram para mulheres, as que viveram pela liberdade das outras, aquelas que morreram por isso; aquelas que lutaram por mulheres e sobreviveram através da força feminina; aquelas que amaram mulheres e que perceberam que, sem a consciência e a convicção de que mulheres são primárias nas vidas umas das outras, nenhuma perspectiva nos é possível. O feminismo heterorrelacional, como o humanismo heterorrelacional, obscurece a necessidade da amizade feminina como um pilar para o feminismo, bem como uma consequência dele.

– Janice Raymond, A Passion for Friends – Toward a philosophy of female affection. Tradução: Carmen de Carvalho.

as solteiras e as lésbicas

“Qualquer ataque à solteira é inevitavelmente um ataque à lésbica. O direito das mulheres de serem lésbicas depende do nosso direito a existir fora de relacionamentos sexuais com homens. Quando as lésbicas são estigmatizadas e insultadas, então, também, todas as mulheres que vivem independentemente de um homem.”

— Sheila Jeffreys, The Spinster and her Enemies.

a categoria de lesbianismo

Historiadoras lésbicas e feministas como Lilian Faderman e Caroll Smith-Rosenberg também argumentaram que uma identidade lésbica específica, baseada nas categorizações da sexologia, foi criada no final do século XIX. Elas mostraram que, antes disso, britânicas e americanas de classe média, fossem casadas ou solteiras, engajariam-se rotineiramente em amizades passionais, românticas e frequentemente duradouras entre si; o que incluía constantes expressões de um amor pleno e dormir nos braços uma da outra, no mesmo travesseiro mesmo por uma vida inteira sem que isso fosse visto como algo suspeito. Havia algumas mulheres que, entretanto, ao longo do século XIX, que se enquadrariam no que viria a ser mais tarde o modelo sexológico, algumas que até se vestiam como homens e amavam mulheres, apesar da ausência do modelo sexológico. Uma mulher, por exemplo, do coméco do sec. XIX em Yorkshire, Ann Lister, se engajou em relações sexuais entusiásticas com vizinhas, até o ponto de contrair doenças venéreas, como conta em sus diários, e realmente concebia-se como “diferente”. Mas a existência desse tipo de mulher não parece ter influenciado a inocência com a qual amigas levavam suas relações, ou a aceitabilidade social do amor entre duas mulheres. Foi o surgimento da sexologia que tornou pública e estigmatizou a categoria de “diferença sexual”.
(…) A definição de Faderman de lesbianismo não dependia de contato genital. Ela diz “o amor entre mulheres foi primariamente um fenômeno sexual unicamente na literatura masculina”.

Os críticos de Faderman a acusaram de traição, de “dessexualisar” o lesbianismo ao incluir, em sua definição, mulheres que não tiveram contato genital no passado ou tivessem contato genital pouco frequente no presente. Para aquelas que veem o lesbianismo como diferença sexual,, amigas românicas claramente não qualificam. Mas para feministas pras quais escolher e amar mulheres é a base da identidade lésbica, elas qualificam sim. A conexão genital é difícil de provar. As lésbicas, ao longo da história, vão se provar bastante poucas, e a história das lésbicas começará apenas a partir do século XIX, se o modelo sexológico for adotado. A história da heterossexualdiade nunca foi limitada à comprovação do contato genital. A heterossexualidade é uma instituição política que não começou com a sexologia em 1890. Não é apenas uma das várias diversidades sexuais. A proposta da história das lésbicas é analisar a história da resistência feminina à heterossexualidade como instituição, em vez de apenas buscar mulheres que se enquadrem numa definição surgida no século XX e baseada na sexologia.

– retirado de Sheila Jeffreys, The Lesbian Heresy

HETEROREALIDADE

Heterorrealidade é a percepção de um mundo no qual a mulher existe sempre em relação ao homem (…), descreve uma situação criada pelas heterorrelações (…) que expressam a ampla gama de comunicações afetivas,sociais, políticas, econômicas, entre homens e mulheres (…) decretadas pelos homens. (Raymond, 1986).

Janice Raymond propõe que a cosmovisão dominante podia ser descrita como “heterorrealidade”. essa perspectiva apoia a ideia de que a mulher “existe sempre em relação a um homem” e,consequentemente, que as mulheres juntas são, de fato, mulheres sozinhas.

Esra heterorrealidade é criada pelo sistema dominante de heterorrelações, que se expressa em uma ampla gama de relações sociais, políticas e econômicas estabelecidas entre homens e mulheres. Por homens.

Paradoxalmente, as mulheres são usadas como instrumento para sustentar as heterorrelações, quando na verdade a realidade é homorrelacional, isto é, são as relações masculino-masculino que de fato determinam o curso da realidade nas esferas sociais, políticas e econômicas. O resultado é que a energia das mulheres se gasta em apoio às heterorrelações.

Na lógica das heterorrelações, as únicas relações para as mulheres são as relações homem-mulher. A heterorrealidade supõe que as mulheres não se relacionam ou não deveriam relacionar-se entre si. Raymond propõe que esta é a base da necessidade de uma filosofia do afeto feminino (o projeto de seu livro, A passion for friends ). As mulheres que têm sido monopolizadas pela manutenção de relações com homens agora devem refletir sobre o que significa para as mulheres moverem-se para além da separação heterorrelacional das mulheres, através de relações ginoafetivas. As relações ginoafetivas são relações de atração, influência, e movimento mulher-mulher. A amizade entre mulheres tem sua origem com as mulheres originais, que traçam seus próprios “começos desde o mais fundo de seu Ser e outras mulheres”. A amizade feminina é um contexto em que as mulheres podem recuperar sua integridadede seus Eus desintegrados e restaurar a ordem primordial da mulher nas relações das mulheres.

O ginoafeto é um contexto no qual as mulheres podem recordar as mulheres originais.

— Janice Raymond. A passion for friends:towards a Philosophy of female affection. Boston: Beacon Press, 1986.

ginoafeto

“A criação do amor entre mulheres foi uma tarefa necessária para a própria sobrevivência do feminismo. Se as mulheres não amarem a si mesmas e a outras mulheres, então elas não terão base na qual se identificar e rejeitar atrocidades contra mulheres. Para um movimento feminista a solidariedade do oprimido foi uma base necessária para a organização. Mas o amor entre mulheres foi sempre visto como constituinte de nada mais que uma versão de mulheres da camaradagem.
Raymond inventou o termo ‘Gyn/afeição’ para descrever o amor entre mulheres que é a fundação do feminismo. Gyn/afeição ‘conota a paixão que mulheres têm por mulheres, ou seja, a experiência de profunda atração pelo profundo e vital Ser e o movimento para outra mulher vital’ (p. 7). A política feminista precisava ser ‘baseada na amizade… Assim, o significado básico de Gyn/afeição é que o afeto de mulheres move, agita e desperta a outra para o poder completo’ (p. 9). Para muitas feministas a conclusão óbvia do amor entre mulheres era o lesbianismo (Radicalésbicas 1999). Raymond explica que embora seu conceito de Gyn/afeição seja não se limite ao lesbianismo, ela não entende porque alguma mulher que ama mulheres pararia o lesbianismo.”

— Sheila Jeffreys, Unpacking Queer Politics

orgulho lésbico – andrea dworkin

Para mim, ser uma lésbica significa três coisas.
Primeiro, significa que eu amo, acalento, e respeito mulheres em minha mente, em meu coração, e em minha alma. Esse amor de mulheres é o solo no qual a minha vida é enraizada. É o solo de nossa vida comum junta. Minha vida cresce desse solo. Em outro solo, eu morreria. De todas as maneiras eu sou forte, eu sou forte por causa do poder e paixão desse amor carinhoso.
Segundo, ser uma lésbica significa para mim que existe uma paixão erótica e intimidade que vem do toque e gosto, uma selvagem, picante ternura, um suor doce e molhado, nossos seios, nossas bocas, nossas vulvas, nossos cabelos emaranhados, nossas mãos.
Eu falo aqui de uma paixão sensual tão profunda e misteriosa quanto o mar, tão forte e tranquila como a montanha, tão insistente e mutável como o vento.
Terceiro, ser uma lésbica significa para mim a memória da mãe, lembrada em meu próprio corpo, procurado, desejado, encontrado e verdadeiramente honrado. Significa a memória do útero, quando nós formávamos uma só com nossas mães, até o nascimento quando nós éramos separadas dilaceradamente. Significa uma volta àquele lugar interior, no interior dela, no interior de nós mesmas, aos tecidos e às membranas, à umidade e ao sangue.
Existe um orgulho no amor carinhoso que é nosso terreno comum, e no amor sensual, e na memória da mãe – e esse orgulho brilha tão resplandecente quanto o sol de verão ao
meio-dia. Esse orgulho não pode ser degradado. Aqueles que o degradariam estão na posição de atirar punhados de lama ao sol. Ainda ele brilha, e aqueles que arremessam lama somente sujam suas próprias mãos.
Às vezes o sol é coberto por camadas densas de nuvens negras. Uma pessoa olhando de baixo juraria que não há sol. Mas ainda o sol brilha. À noite, quando não há luz, ainda o sol brilha. Durante a chuva ou granizo ou furacão ou tornado, ainda o sol brilha.
Será que o sol se pergunta “Eu estou bem? Eu valho a pena? Existe o suficiente de mim?” Não, ele queima e brilha. Será que o sol se pergunta “O que será que a lua pensa de mim? O que Marte sente a meu respeito hoje?” Não, ele queima, ele brilha. Será que o sol se pergunta “Sou eu tão grande quanto outros sóis em outras galáxias?” Não, ele queima, ele
brilha.
Nesse país nos próximos anos, eu acredito que existirá uma terrível tempestade. Eu acho que os céus se escurecerão além de qualquer reconhecimento. Aqueles/as que caminham nas ruas as caminharão na escuridão. Aqueles/as que estão em prisões ou instituições para doentes mentais absolutamente não verão o céu, somente a escuridão fora de janelas gradeadas. Aqueles/as que estão famintos/as e em desespero absolutamente não poderão olhar. Eles/as irão ver a escuridão enquanto ela se deita no chão em frente a seus pés. Aquelas que são estupradas olharão para a escuridão como se olhassem para o rosto do estuprador. Aqueles/as que são assaltados/as e brutalizados/as por loucos irão olhar atentamente para a escuridão para discernir quem está se movendo na direção deles/as a cada momento. Será difícil de lembrar, enquanto a tempestade se enfurece, que ainda, mesmo que não consigamos ver, o sol brilha. Será difícil para lembrar que ainda, mesmo que não consigamos ver, o sol queima. Nós ainda tentaremos vê-lo e tentaremos senti-lo, e esqueceremos que ele ainda nos aquece, que se ele não estivesse lá, queimando, brilhando, essa Terra seria um lugar gélido e desolado e estéril.
Enquanto nós tivermos vida e respiração, não importa quão escura a Terra nos rodeie, o sol ainda queima, ainda brilha. Não existe hoje sem isso. Não existe amanhã sem isso. Não
existiria nenhum ontem sem isso. Essa luz está no interior de nós – constante, aquecida, e cicatrizadora. Lembrem-se disso, irmãs, nos tempos escuros que estão por vir.

[Andrea Dworkin – in Our blood]