poema: A Ameaça Lésbica*

Tenha cuidado:

Não to falando de estuprador
Este pode ser reformado.

Isto não é sobre namorado agressor
Não é sobre misoginia dos gays
Não é sobre hostilizar mulher
Isso é sobre um perigo maior

É sobre uma sombra predatória
Uma ameaça potencial
Um perigo pra toda hetero e bissexual

Não é sobre difamação
Não é sobre hostilidade horizontal

Essa poesia
Não é sobre agressão às mina
Não, isto é sobre
As lesbofeminista

E todas as suas amigas.

Ouvi dizer que você a elas se associa
É verdade? Vim verificar
Não que eu já tenha te visto
De qualquer forma esbravejar
Ou mesmo falar
Na real você é bem quieta né

Assim, eu só não quero me misturar.

Eu li uns textos
As mina nem eram do Brasil
E também ninguém me propagandeou
Mas tipo, mor texto hostil
Me fez mal, me culpabilizou
Então diga, você se associa
A essas lesbofeministas?

Você me acha colaboracionista?
Acha, acha?!
Sei que tu nunca disse nada
Mas to aqui te perguntando

Não, não quero saber
Se você discorda da Bev Jo
Ou da Sheila quando ela começou
E até onde você pensa por si
Enquanto admira esses textos
Ou por que, enquanto butch
Viu sentido neles mesmo

Só quero saber
Você é lesbofeminista?

Não, ninguém veio me impor
Não, ninguém veio defende-lo pra mim
Mal responderam às minhas críticas
É, realmente, bem quieta essas mina

Mas o silêncio de vocês é tão ofensivo
Como assim, vocês não querem falar comigo?!

Três ou quatro caminhão se ajudando
Em vez de gastar seu tempo com o mundo?
O que poderiam, afinal, estar tramando?

Criança quieta tá aprontando
Lésbica quieta tá me hostilizando

por Nina Scarnia
* Referência à idéia de Lavender Menace, que foi a acusação feita nos 70 por Betty Friedam, feminista autora de A Mística Feminina, pois identificava nas lésbicas uma ameaça ao feminismo.

JULIA, QUIERO QUE SEAS FELIZ

Margarita Pisano

Desde a Instituição, a análise de gênero se legitimou e se neutralizou, despolitizando o desequilíbrio perverso – entre mulheres e homens – em que o sistema se sustém e que nos está conduzindo, vertiginosamente, em direção à desumanização. O gênero situa o feminino e o masculino em uma relação assimétrica, sem transpôr a linha crítica do desmonte de seus valores e privilégios.
Essa macrocultura não se modifica com as demandas de igualdade dentro de si mesma e/ou na exaltação das diferenças, mas responde a uma lógica de superioridades-discriminações e à cegueira do orgulho de sua história e sua cultura.
As reivindicações não geram ideias diferentes das permanentemente rejuvenescidas pela masculinidade: a igualdade, o respeito, a tolerância, a liberdade, são conceitos elaborados desde o corpo histórico homem; suas reivindicações partem de uma história legitimada, a das mulheres, não. A liberdade vivenciada por um corpo mulher, domesticado e com potencialidades reprodutivas, é radicalmente distinta a do homem.
As mulheres foram acedendo à masculinidade – como fêmeas – e isso se confunde com mudanças culturais, quando só são de costumes. Penso que a liberdade, a igualdade, inclusive o amor, são boas ideias que, envolvidas em papel de presente, se transformam nas mais eficientes para perverter o desejo de autonomia e de verdadeira liberdade de cada ser humana.
Desde o lugar político-simbólico em que me situo, não acredito nesse sistema e em sua capacidade de mudança civilizatória, ao contrário, acredito que ele é capaz de gerar cada vez mais violência, como consequência de sua lógica, encarnada em um só corpo sexuado, histórico, válido. É questão de olhar… e ver… onde estamos e o que fazemos como humanidade. A masculinidade contém a feminilidade, é uma só ideologia e construto cultural. Esse olhar é crucial para entender a macrocultura vigente desde um lugar menos enganchado e contaminado por ela.
Nessa masculinidade/feminilidade, a que pensa, faz e ordena é a masculinidade. O coletivo de homens pensou e instalou as mulheres dentro da feminilidade. No entanto, o feminino não somos as mulheres, apesar de que somente nós tenhamos a experiência submetida da feminilidade. Trata-se de uma construção social, política, econômica e emocional desde um corpo alheio. A feminilidade não tem autonomia e nem um corpo pensado-pensante, valorado desde si mesmo: obedece quem pensa e assume aberrantemente a cultura masculinista como própria.
Se entendermos o monômio simbiótico do masculino-femenino dessa maneira, não é estranho que hoje em dia ou homens queiram recuperar o que lhes parece desejável na feminilidade, criada por eles e para eles. Dessa maneira, transitam de um patriarcado forte e duro para uma masculinidade mais plena e suavizadora de suas exigências e, sobretudo, de suas responsabilidades atuais e heróicas. Eu chamo a isso “el triunfo de la masculinidad”.
Se analisarmos desde AFORA, o último filme de Almodóvar, Hable con ella (prêmio Oscar), veremos essa projeção: os homens choram, cuidam, sentem, enquanto as mulheres de descerebram, seus corpos aparecem mudos, manipuláveis e violáveis; máxima realização da masculinidade/feminilidade, como expressão de sua grande fantasia.
Reivindicar a capacidade de emocionar-se e chorar, como se fosse o feminino em um corpo homem, me parece contaminado pela contraleitura de que uma mulher inteligente, ativa e pensante tem mais desenvolvida sua parte masculina (a cabeça). Ou seja, pensar, criar e fazer política, que são coisas constitutivas do humano, estão apropriadas pela masculinidade. Portanto, a operação de desqualificação e de submetimento das mulheres já está em marcha, e é mais profunda do que aparenta, mesmo quando a masculinidade reivindique parte da feminilidade para si; desse lugar simbólico, tira e põe o que lhe convém social, política e economicamente.
A operação feita pela masculinidade patriarcal – e que continua ressignificando a masculinidade moderna – foi deixar o corpo cíclico das mulheres atrapado na simbólica natureza-animalidade, despojando-o da criatividade intelectual humana, mas enfatizando sua intuição, seu amor-entrega e emocionalidade (descerebrando-o). Em contrapartida, o corpo homem, que também é natureza, foi transformado em pensante, falante e capaz de criar símbolos e valores, instalando-o em um protegido e vantajoso orgulho.
Por isso, há muitas diferenças entre desejar parte da feminilidade desde o lugar do poder (poder escolher feminilidades) e resistir a ela desde o lugar do dominado, como o fizeram muitas mulheres durante séculos, servindo os homens e sendo a força de reposição e reserva de seu sistema cultural. Não resgato Nada da feminilidade: o chorar não é um privilégio, a comodidade do feminino, para as mulheres, esconde escravidão; para os homens, representa liberdade.

Lesbofobia

por Nina Scarnia

Deixamos você entrar

Pelo prazer de te expulsar

Queremos você aqui

Pra mostrar

que podemos te arremessar

Pra longe, longe do nosso chão

No qual você só pisa se

quisermos

E deixamos só pra te ver

Correr

Depois que te humilhamos

No estupro, na porrada

Nas palavras

A vida não passa diante dos olhos

É bem a morte que mora em você

Que se materializa em homens

Enormes

Estilhaços

Nada mais é visto como todo

Seus olhos entre ser mulher

Ser lésbica

Ou ser humana

Nunca ser levada a sério

Apenas na porrada

Gritar lesbofobia

Te faz louca

manipuladora

Desonesta

E errada

Tudo menos lésbica

Pior que um animal

Mal chega a ser um objeto

Quasímodo sexual

Corpo raso

Mal formado

Terceiro sexo

Muito abaixo

Muito abaixo

Muito abaixo

(setembro/2014)