Uma perspectiva crítica sobre o escrachamento de lésbicas

Um ensaio novamente sobre a questão do punitivismo e escracho como maltrato de lésbicas e a examinação das raízes na Misoginia da sua inspiração nas éticas de uma sociedade penal, mantendo que as práticas punitivistas servem a um propósito mais de controle social que de justiça e transformação profunda de um tema. Novamente dedico-me a tarefa de expôr minha oposição à destruição desumanizante e malignizante de alguém, como imperativo ético lésbico-feminista.

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O Apedrejamento de Lésbicas

por Jan. hembrista@riseup.net

“Apedrejamento, ou lapidação, é um método de punição onde um grupo joga pedras numa pessoa até que ela morra. Nenhum indivíduo do grupo pode ser identificado como aquele que mata o sujeito (…) Mais lento que outras formas de execução, a lapidação dentro do contexto da cultura ocidental contemporânea é considerada uma forma de execução por tortura.” (https://en.wikipedia.org/wiki/Stoni…)

     O apedrejamento constituiu-se na cultura popular como um símbolo, um arquétipo. O apedrejamento ocorre há muitos séculos, ocorreu em muitas culturas, e ainda existe contra todos apêlos dos Direitos Humanos por sua abolição. Foi a primeira forma de queima das bruxas. A mulher apedrejada até a morte, acusada de uma insubmissão à ordem patriarcal. A mulher acusada de adultério é como a mulher acusada de bruxa: ela é acusada de trair, de repente, uma cultura, a cultura masculina. Talvez pela forma que ela se portasse, por sua insubmissão, ou por ação de uma subjetividade masculina que, num funcionamento psíquico paranóico, delirasse nela uma ameaça, o que nunca foi muito difícil em se tratando das fantasias de castração em torno ao feminino que motivam a misoginia que nasce do imaginário masculino. O arquétipo é tão forte que ele se tornou uma frase de conhecimento popular retirada da literatura bíblica: quem nunca pecou que atire a primeira pedra, disse-se quando Maria Madalena estava condenada a ser apedrejada por prostituição ou pelo que parece que consta na bíblica, acusada de possuir 7 demônios em si. A relação com o demoníaco e a sombra, a demonização, seriam primórdios das acusações às bruxas? Repete-se também a questão de controle do corpo, da sexualidade, de que essa sexualidade pertence ao homem. Talvez, assim como as bruxas, a maioria dessas mulheres apedrejadas fossem lésbicas.

     Eu trago essa reflexão sobre apedrejamento porque quero pensar sobre os linchamentos morais no movimento feminista. A prática do rumor[1], as acusações falsas, o trashing, a exposição, o public shaming [2]. O castigo em bodes expiatórios escolhidos para expiar nosso Mal, como legados do Patriarcado, legados da misoginia mais ancestral que nos habita.

     O apedrejamento é universal. Ele existe de forma simbólica, como prática de Misoginia, e é uma programação ancestral de nossas mentes e nosso inconsciente coletivo. Assim como é arquetípico a queima e perseguição de alvos escolhidos como bruxas. O apedrejamento é um referente de como mulheres e lésbicas são atacadas e tratadas, socialmente no Patriarcado, e depois, dentro dos movimentos sociais por suas falhas individuais. Somando-se à imagem já associada ao feminino de pecadoras e portadoras do pecado original, agencia-se todo repertório de demonização e deturpação da representação das lésbicas ao longo da história. E aqui eu quero abordar a presença desses repertórios depreciadores de mulheres e lésbicas no fenômeno da hostilidade horizontal entre mulheres e lésbicas.

     Embora as pedras em alguns países sejam reais, as pedras que se tratam aqui são outras, simbólicas. O ato de apedrejar se conserva mas sem pedras, mas não por isso se torna menos letal. O assassinato pode não ser físico, mas pode ser um assassinato existencial em vida. Enquanto dirigidos os escrachamentos à possibilidade de existência política, afetiva, social, cultural, artística ou intelectual de uma lésbica, de uma pensadora, ou até mesmo a lésbica como existente em si, é de uma letalidade muito triste pela perda que produz de desejos engajados na criação de outra vida. Pela perda de mais uma lésbica numa existência expressada.

     Os alvos do apedrejamento são as audaciosas intelectuais, as céticas, as insubmissas, as autênticas, as que se diferenciam, que não seguem a manada, que pensam por si mesmas, as radicais de profundidade, não as de fanatismo doutrinário que agride as que não se encaixam na disciplina moral exigida. As radicais pensantes e criadoras que não tratam o pensamento lésbico como uma religião ou um dever-ser moral feminista estrangulador. Também são alvo do apedrejamento as lésbicas em si e o medo que elas despertam, que sua sexualidade principalmente desperta. A sexualidade lésbica nos assusta, assusta as mulheres, assusta as próprias lésbicas, e alguns discursos criam uma nova aura de tabu em torno à sexualidade e afetividades lésbicas, dominando os debates e discursos, narrativas, com um vocabulário que termina por se restringir em termos como ‘abuso’, ‘agressão’ e ‘violência entre lésbicas’ para definir a complexidade das relações lésbicas. As lésbicas temos uma carência cultural própria e há muito habitamos a linguagem dos homens, a linguagem patriarcal é limitada para definir nossas experiências e constrange nossa imaginação. A sexualidade lésbica é um tabu rodeado de medos e ansiedades. Por meio de um feminismo que empaca em palavras da experiência de sofrimento, carece-se de narrativas da corporalidade que não sejam as de vitimização dessa experiência, viciando a compreensão de mundo em um simbólico limitado que vem precarizando simbolicamente o existir lésbico. Não é de agora que os feminismos erram de estratégia ao criar uma simbólica de maltrato, de sofrimento. Necessitamos produzir e habitar nossos imaginários também com as experiências da alegria e criação, resistência. A precariedade simbólica de um feminismo que reduz a compreensão das relações como sendo ou ‘abusivas’ ou…puras? Perfeitas? Seria a perfeição relacional possível, ou talvez isso seja a própria imagem da morte, do fim, por representar uma perspectiva de fim-da-História, onde não seja mais necessário realizar-se mais o devir e reinvenção de si inerentes à vida?

     As lésbicas que são leais a pensamento e éticas lésbicas representam uma ameaça para movimentos feministas heterocentrados, reformistas e vitimistas, e sim, uso a palavra vitimista embora seja polêmica, desde meu lugar de lésbica e não desde o patriarcado. Pois geralmente se tratam de discursos que nunca apontam para a responsabilidade das mulheres em sua libertação e em sua capacidade para isso, e sim sempre mulheres como produtos determinados da materialidade incapazes de superar e intervir na sua vida, retirar sua participação no que a oprime, criar sua existência, retomar sua autonomia, o que me parece uma subestimação muito grande das próprias mulheres.

     Penso em um feminismo numa ética diferencialista de valorizar o habitar o Afora (Margarita Pisano) [3], não que busca entrada no Patriarcado (Sonia Johnson) [4], um feminismo separatista que aposta na capacidade de criar nossas vidas, à diferença de um feminismo voltado ao demandismo de políticas e direitos ao Estado e Patriarcado. [5] “Ensinem os homens a não nos estuprar”, posições de passividade, de espera de cessões do Estado e Patriarcado, que pôe nas mãos do outro a possibilidade de satisfazer suas necessidades existenciais. Se passamos a produzir nossa autonomia de vida, superamos o lugar de vítimas sentenciado para nós e perpetuado pela dependência na agenda de direitos e reformismos. A lésbica autônoma realiza uma radicalidade que consiste em mostrar uma possibilidade política que não a da postura ressentida (chamado por Nietschze de niilismo reativo, que apenas reclama e se queixa numa crítica sem potência transformadora)[6], o ressentido que ataca ao Outro, ao Estado, ao Patriarcado, aos outros, pelo que não tem. A autonomia aponta para uma postura ativa, que cria sua vida, sem esperar dos outros e dos sistemas. A lésbica autônoma se faz responsável de si e toma a vida em suas mãos, realizando o Cuidado de Si, saindo da ilusão de sermos faltantes e de que o sistema tem algo do qual precisamos, uma construção que é conveniente ao próprio sistema por legitimá-lo e criar dependências de novos maridos psicológicos e institucionais. Também acredito que quem consegue buscar novas formas de se afetar criativamente, quem cuida de si, não precisa denunciar ninguém nem excluir ninguém como sendo o causador de seu Mal, nem coagir as demais mulheres a isso e que a maternalize nas práticas de exclusão de uma mulher ou outra que me desagrada e de quem falo mal, não peço proteção a ninguém porque cuido de mim. A lésbica que vive na intensidade não precisa mais disso, esquece suas mágoas, porque vive intensamente e é causa ativa de sua própria potência.

     As lésbicas que podem desestabilizar o pensamento religioso, a doutrina, o cultismo das teorias e das dinâmicas de movimentos políticos capturados, onde firma-se uma identidade estática, a lésbica propositora, ela desestabiliza. Isso gera as depreciações de que as lésbicas são agressivas e hostis, porque dificilmente no movimento uma mulher que acusa a outra se faz cargo do que produz em si o encontro com uma provocação reflexiva ou com a imagem intrigante desta Outra. E limita-se ao simbólico feminista que reforça a auto-imagem vitimista instaurada pelo patriarcado por meio da feminilidade: nomeio como agressão, como agressora, como agressiva e violenta. Esta rebeldia da pensadora é na verdade sentida como agressão a uma Verdade e logo, como a si mesma no caso da feminista que sente a desestabilização da sua verdade e fé como algo agressivo. Essa é a dinâmica que se vê, acusatória, onde coloco isso como característica da outra, e não como algo produzido em mim, questionamento do qual me defendo. Dinâmicas que se repetem entre feministas, onde não me faço cargo da minha própria fragilidade autoproduzida e auto-condescendência.

     Quero pensar sobre apedrejamento para pensar sobre o punitivismo também, dentro do feminismo, contra lésbicas. As práticas de rumor, de exposições, de linchamentos políticos e destruições psíquicas de lésbicas. A repetição de outros arquétipos patriarcais e calúnias lesbofobicas tais como lésbicas predadoras, agressoras, monstruosidades, pederastas, corruptoras de mulheres ou de meninas, possessivas, dominadoras, machonas, autoritárias, que exercem poder, especialmente dirigidas às divergentes da feminilidade. Narrativas negativas/depreciativas sobre a lesbianidade sedimentadas na Cultura. Narrativas estas, interiorizadas por nós, lentes heterossexuais com as quais nos vemos. Lentes que atuam cegando, cegando por exemplo um olhar para as subjetividades e relações lésbicas, a tomar por exemplo, o tratamento cristão que vemos, dado ao tema de lésbicas que estiveram em relações difíceis. Realidades lésbicas tomadas de forma individualista e num tratamento moralista, ignorando as forças que produzem os relacionamentos lésbicos instáveis ou problemáticos numa sociedade heterossexista.

     São tratamentos desumanos, de exclusão, julgamento, sentenciamento e punição severa, piores dos que as formalizadas pelo Estado Penal de Direito, que ao menos se dispôe de recursos formais de autodefesa, direitos, formas de evitar o mau-uso do instrumento. Tratamentos desumanizadores, de estigmatização, que geram dor psíquica inestimável e invisível. Excluem quem já se encontra numa situação de exclusão radical: a lésbica. Excluem aquela que já se encontra desterrada num mundo de homens, num mundo heterossexual, quem já é precarizada em vínculos sociais e quem já sofre séculos de estigmatização, quem já é estigmatizada e demonizada na Cultura, sendo sem muita dificuldade que se retomam os estigmas na hora em que convêm depreciar uma lésbica e negativizar sua existência, manchar. [7]

     Talvez isso se deva ao fato de que lésbicas são vistas como menos que humanas. Se para a categoria mulher aceder ao humano, privilégio da masculinidade, já é difícil, a Lésbica não é vista como mulher [8], escapa a essa categoria e se torna o abjeto. A Lésbica é uma aberração. Lésbicas não são humanas, são corpos abjetos [9], a serem eliminados fisicamente e narrativamente, contidos no ameaçador que representam, no irrepresentável que apresentam. Por isso as lésbicas somos tomadas como bestas predadoras, opressoras, agressoras/lesadoras da zona de conforto de mulheres heterossexuais ou dos códigos da feminilidade.  Somos indecentes para a sociedade e por isso, não existe tratamento humanitário para lésbicas. É essa a herança histórica recente de séculos de aprisionamentos, tratamentos com eletrochoques, manicômios, assassinatos, genocídios, os corpos abjetos terríveis sendo queimados nas fogueiras e apedrejados até sua desaparição. Caluniadas como molestadoras, pederastas, corruptoras e depravações sexuais. Seguimos sendo tratadas como criminosas por séculos e séculos, agora até mesmo pelo feminismo.

     Como não percebem que nessas ações de violência ainda inomeável como tal, como atrocidade que é, sendo atuadas por forças patriarcais que residem arcaicamente em nós, mulheres? Que atuamos a misoginia antiga do patriarcado, que atuamos como colaboradoras dessa ordem heterossexual? Que traímos as lésbicas, que somos movidas por colonização heterossexual mesmo as lésbicas, quando aplicamos as leituras heterossexistas sobre a existência lésbica e suas relações, suas vivências e dificuldades, sua precarização emocional e psicológica num estado de lesbofobia e lesbicídios, de sabotagem das vidas lésbicas? Atuamos, como diz Mary Daly, como fembots[10], que traduzo como robo-fems ou robô-minas, do Patriarcado, como “policiaizinhas” do Patriarcado, desde o que fomos programadas a fazer: reforçar sua ordem. Ajudar a perseguir as bruxas, as pecadoras, as convertidas em monstruosidades, as que devem ser mortas e afastadas, excluídas, as que devem ser extintas, as ameaçadoras, as adúlteras e infiéis às éticas patriarcais, as lésbicas, as indecentes, as que existem como seres sexuais, as malcriadas, as desobedientes da feminilidade como as sapatonas butch, é algo que fazemos frequentemente, participando do maquinário masculino.

     Participar em abusos ritualísticos grupais, contribuir em exposições e destruição de reputação de mulheres e lésbicas, demonizar mulheres/lésbicas com quem se teve um conflito e caluniá-las, acusar mulheres e lésbicas por falhantes morais, culpabilizando-as por erros irreparáveis em cruzes que devem carregar por toda sua vida, cristianamente, induzir pessoas à rituais psíquicos de auto-flagelação e loucura destruindo sua auto-estima… São equívocos éticos incongruentes com o compromisso [lésbico]feminista que firmamos. Passagens ao ato de violações do outro, geralmente possibilitados pelo clima grupal que socializa e autoriza a perversidade, que desculpa e redime e paradoxalmente, coloca aquela que é agredida violentamente e mutilada psicologicamente como agressora e violentadora, impregnando nela conceitos de Ser que demonizam a pessoa dela pelo que ela é, como se nascesse aquilo e fosse ser sempre aquilo. É a situação cármica que encontramos e reencontramos, em situação de repetição e retorno do mesmo: novamente, a caça as bruxas, a cada reencarnação. A cada reencarnação, as pedras que nos matam.

     Apedrejamentos no movimento social, onde mulheres ou lésbicas escolhidas como bodes-expiatórios da vez são escolhidas para despejar-se o Mal que habita em mim, para que eu me purifique e atenda ao arquétipo de santa e virgem patriarcal da feminilidade. A demanda da mulher descorporizada, que não tem afetos de agressividade ou irritabilidade, por serem pecados, pois mulheres não devem ser violentas, diz-se. Porém mulheres podem ser violentas de forma perversa, não de forma aberta e objetiva nem física, por meios indiretos permitidos à feminilidade e não tão menos terríveis, que são os bullyings e as fofocas, as intrigas, picuinhas que resultam num estado de abuso e violação psíquica não reconhecido em sua importância. A mulher feminina e dócil que jamais será acusada de ser alguém agressora às outras ou à zona de conforto de alguma, pois não vai romper com a expectativa de que mulheres devem se portar sempre bem e que se forem atuar uma violência, que a pratiquem de modo venenoso e invisível, pelas costas, intoxicando vínculos e fomentando imaginários em torno a sua ‘inimiga’. As lésbicas alvos desses rituais de maltrato são apedrejadas até sua morte política, social, psíquica, existencial, artística, intelectual, rebelde. São amansadas e finalmente, sua potência assustadora entrou em estado vegetativo.

     Visibilizar o apedrejamento simbólico é uma crítica à todas exposições, todos escrachos, todas pseudo-denúncias (public shaming) policialescas e aquelas em forma de fofoca com a ausência da outra para que esta não possa se defender. Todos falsos relatórios, tegiversações, o ‘disseram que’, exageros e leituras parciais de um conflito atravessadas por subjetivismos distorcionantes do relato. Porque não vejo como qualquer uma dessas atitudes possam chegar a ser humanas. É impossível ser algo humano o escracho descaracterizado e oportunista contra lésbicas. Jamais vai ser uma forma humana de abordar problemas entre nós, uma forma construtiva de abordar o tema que se propôe supostamente a denunciar e que lhe confere tanto ar de legitimidade chantagista. O apedrejamento escrachativo promove apenas invisibilidade lésbica, por invisibilizar nossas narrativas e histórias e a história daquela pessoa que se maligniza. Na tradição punitivista herdada por séculos de violências de Estado, Tiranias e Patriarcado, a pessoa é sempre o que é tornado maligno, não é a crítica à sua ação. Na lógica punitivista, nunca vai importar entender a história daquele sujeito transformado em “o bandido”, “o traficante”, “a lésbica agressora”. Nunca vai haver interesse em questionar-se o que produz os sujeitos, que condições vivenciadas, quais violências, exclusões vivenciadas e qual seu impacto psíquico para que tenha se tornado alguém tão ‘ruim’. Logo, entendo que o punitivismo aplicado às lésbicas é incoerente com a própria premissa radical que se volta a entender a materialidade que nos constrói e às mulheres, lésbicas.

     Quando falo em punitivismo, não apoio a apropriação dessa discussão pelos homens e seus casos de violência, porque são atrocidades sistemáticas e convictas, que já foram demonstradas para nós em exemplos e vivências que voltam a se repetir por mulheres. Eles não tem interesse em se desconstruírem que lésbicas e feministas sim, se interessam, desde que integram um movimento social e vem realizando um processo de autoconstrução e reconstrução de si, desfazendo-se de comportamentos de subordinação, feminilidade, maquiagens, depilação ou heterossexualidade. Os homens tem poder estrutural demais e é muito perverso seu terrorismo, e ele se extende até mesmo nos movimentos sociais e na esquerda. Não precisamos mais provas de que não é possível o diálogo com eles e que eles representam um risco à nossa sobrevivência.

     Abordar o punitivismo de maneira crítica [11] serve para refletir as relações entre mulheres no movimento. Serve para possibilitarmos pensar porque nos tornamos aquilo que se diz e se acusa de forma condenatória. Seja uma mulher acusada de raivosa ou agressiva ou uma mulher que reage mal à perda da outra, ou a que não entende limites (questão que na verdade, pouco se avançou nas relações num geral, é apenas uma consequência de uma ética que tomamos generalizadamente, quando até a noção de sororidade em si exige que se ignore os limites próprios de uma). O que a subjetiva, o que a construiu daquela forma, que informações recebeu ou não recebeu. O que nos construiu para não atendermos às expectativas morais perfeccionistas do movimento, do porque tivemos tal dificuldade relacional num momento de nossas vidas, ou porque se repetem essas ações-sintomas negativos quando nunca foram tratados e retirados do inconsciente e dado um destino diferente a isso. Quais as forças heterossexistas em jogo, como entendermos melhor as lésbicas e seus desafios, como acolher as ambiguidades e complexidades que compôem a subjetividade lésbica ainda desconhecida para a teoria feminista ou para a história, depois de séculos de silêncio sobre essas existências. Chega a ser uma perda científica, de oportunidade de pesquisa lésbica. Uma perda teórica. De criarmos teoria, pensamento, reflexão, para entendermos e recriarnos, dentro das éticas que idealizamos. Como melhorar nossas comunidades entendendo o que passa com nós, olhando para as nossas questões. Deixar de acolher e de buscar entender nossas contradições é seguir no vazio histórico (Margarita Pisano), seguir na nossa falta de história própria de mulheres, nossa falta de memória coletiva, de produções, de criação de cultura, vazio que faz com que, na falta de referentes novos ou diferentes, repitamos os modelos patriarcais que existem eternamente.

     O apedrejamento apenas evita o problema por aniquilar a pessoa que se considera que carrega o Mal, e achar que assim livrou aquela sociedade da malignidade por eliminar alguém produto daquela sociedade. Sem necessidade de mudar a cultura e sem ter que mudar nada, no velho e conhecido punitivismo que vem de séculos de patriarcado e penas de mortes, torturas, mutilações ‘justas’, e formas de punição de transgressoras/os ou rebeldes, muitas vezes em sua maioria, falsamente acusados/as. Aqueles que saíram da linha por algo. Uma forma de controle social: as punições, a penalização, a forma que fazemos o outro pagar com dor, loucura, manicômios, ostracismo, isolamento, sofrimento psíquico e físico. Quando julgamos, atacamos, condenamos, criticamos o outro, é o fascista em nós, o policial que nos habita, o desejo colado ao poder, que atua. [12]

     A acusação é perversa, por seu ar de legitimidade. A acusação (rumor) é tão tomada sem crítica e como verdade absoluta como eram as acusações que se faziam de que as bruxas deitavam com o demônio. De maneira semelhante, a acusada no movimento, acusada de qualquer coisa que seja mentirosa, distorcida, exagerada ou imaginativa-paranóica, ela é levada à insanidade, ela é torturada coletivamente até delirar sobre a malignidade atribuída a si e isso afetar seu autoconceito, vendo-se com os termos dos outros que a depreciaram. Ela assim como as bruxas do passado, depois de tanto cansaço, admite ter dormido com o demônio. Apenas para de, qualquer modo, ser queimada e morta. Jamais a confissão a livraria. Jamais a confissão ou o contrário, a preservação da sua vida pessoal do juízo das hordas perversas e a escolha pela recusa em dar satisfações, a livram ou vão a dar uma chance de não ser aniquilada ou de ser integrada novamente ao coletivo, àquela que é escrachada. É a loba expulsa da alcateia, a loba solitária, que uiva de dor ao se ver em um desterro radical: a margem da margem da margem da margem. A exclusão da exclusão. Excluída como lésbica, excluída da heterorrealidade, excluída de uma comunidade lésbica de sobrevivência cultural, e muitas vezes, excluída por outras posições estruturais de vulnerabilidade que se somam, resultando em uma solidão implacável e potencialmente enlouquecedora, suicidante.

     A situação de ser penalizada me lembra um filme chamado Precisamos Falar sobre Kevin. É uma história fictícia sobre uma mãe de um filho que é como esses adolescentes norte-americanos tidos como psicopatas, que saem matando seus colegas na escola. A mãe dele era uma escritora de sucesso e tinha uma família e um casamento. No momento presente encontra-se com ela na sua situação após o aprisionamento do filho e os incidentes de massacre estudantil: totalmente precarizada, esmolando um subemprego de loja em loja numa cidadezinha pequena onde todos a boicotam por ser a mãe do menino que matou várias crianças. Sua vida acabou, mal consegue alugar uma casa. Sua casa e carro são constantemente assaltados por legumes e tintas sendo atirados contra eles, e pixos a escrachando por ser a mãe de um assassino em série. Ao longo do filme, mergulhamos na mente da mãe: desde sua gravidez indesejada quando ainda solteira, com o ex-marido transando sem camisinha avisando em última hora, à mudança total de sua vida e a perda de liberdade com a gravidez. A depressão pós-parto e a dificuldade de adaptação à maternidade, a criança dessubjetivada e desinvestida que cresce, a criança quase autista anti-social, a dificuldade de ser mãe dessa condição. As contra-transferências – raivas, irritabilidades, agressividades – produzidas na mãe pela sobrecarga materna, a culpabilização da mãe constante, a desolação da mãe que acompanha as tendências anti-sociais do filho que cresce, a tentativa de ser mãe exímia e tentar afetar aquela criança apática e sem capacidade de empatia. Mostra como a maternidade e as cobranças e culpabilizações vão minando sua autoconfiança e tornando-a resignada. Ela vai percebendo as questões do seu filho, mas o contexto a desola, não a crê, não encontra interlocutor, o problema é ela, má mãe, que precisa amar mais ao filho. Ela vai percebendo as tendências do filho mas ninguém a crê, ela não sabe lidar com ele, a ambivalência materna: mães também podem chegar a odiar seus filhos. Um dia, recebe a notícia de que houve um massacre no colégio, e mataram-se centenas de crianças e adolescentes. Preocupada por seu filho, vai ao local apenas para descobrir que o assassino é seu filho.

     O filme fala sobre o punitivismo, o escracho, a injustiça. É nos dada a oportunidade de compartilhar a mente da personagem, culpabilizada e que sofre linchamentos na sua cidade, inclusive físicos. [13] Nos é dada a oportunidade de estar mais perto da pessoa que é escrachada injustamente, de acompanhar os filmes que rodam na sua cabeça retomando o passado, ininteligível e incompreensível para os demais, incapazes de lançar um olhar empático para a sua pessoa. Incapazes de buscar entender sua história. Apenas ela é testemunha e tem que viver aquela condição dolorosa com a coragem que lhe resta, e pagar um preço desproporcional pelos supostos erros cometidos, no caso o ‘erro’ e culpa de ter tido um filho num momento da sua vida.

     Precisamos parar com os apedrejamentos, parar de apedrejar o psicológico das lésbicas, jamais isso será uma forma de reflexão sobre o problema apresentado, jamais será uma proposição de futuro para nós. Precisamos parar com as práticas patriarcais, como uma necessidade urgente de nos des-heterossexualizar e des-misoginizar. Para que possamos sair da engrenagem do Patriarcado, parar de ajudar essa engrenagem e esses ciclos de destruição e iconoclastia de mulheres/lésbicas e sua cultura toda vez que esta ensaia nascer.

     Precisamos parar de trabalhar como algozes para os patriarcas, e por fim, precisamos parar de destruir a nós mesmas. Destruir existências lésbicas e sabotar potências criadoras, devires e subjetividades lésbicas, por meio dos assassinatos políticos e sociais dos escrachamentos ignorantes. Precisamos parar de perder lésbicas e suas contribuições tão importantes, intelectuais, artísticas, políticas, criativas, nessa política de aniquilação e nesse feminicídio simbólico ritual entre nós. Ao dizer que precisamos parar esse ciclo, eu vejo como equivalente a parar de ser a mão que faz a infibulação da menina, da própria filha, para entregá-la a um homem, parar de ser a mulher que joga pedra na adúltera. Parar os ciclos de traições entre mulheres históricos, essa doença hereditária que precisamos nesta geração, dar um fim. E que só daremos um fim quando passarmos a ser agentes, e não apenas vítimas, dentro dos nossos feminismos. Quando paremos de ser cúmplices nessas violências, de participar nelas e se deixar ser coagida a elas, perdendo o senso crítico na licença grupal para a desumanidade. Cortar esse ciclo de colaboração com a cultura patriarcal que instaura esse estado de atrocidade e essa guerra contra mulheres, contra lésbicas. A colaboração simbólica heterossexual por parte das lésbicas ocorre quando nos tornamos ignorantes de nossas histórias, e de umas éticas lésbicas, que priorizam lésbicas e as colocam em primeiro lugar, que entendem como imperativo ético e compromisso político firme feminista e lésbico o tratar-nos às lésbicas de outra forma, não contribuir endossando a visão heterocentrada que nos apaga para fora da existência, que nos anula, e invisibiliza. Uma vida lésbica é uma vida que não se repete. Nenhuma a menos, pelo fim dos assassinatos físicos de lésbicas, mas também pelo fim dos assassinatos simbólicos e políticos de lésbicas nessa heterossexualidade compulsória disfarçada de justiça linchativa.

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Notas e Referências:

 

[1] Andrea Franulic & Insu Jeka. Daqui não sai: reflexões sobre o rumor. Santiago, Chile, 2014. Disponível em https://we.riseup.net/radfem/reflex%C3%B5es-sobre-a-fofoca

[2] O conceito de public shaming eu me apropriei após a brilhante e corajosa palestra de Jon Ronson, Como um Tweet pode arruinar sua vida, no Tedx (canal de palestras no youtube). A palestra aborda o impacto das exposições virtuais com intencionalidade justiceira, como uma modalidade de violência, a virtual. Me pareceu um conceito muito bom para começar a debater e visibilizar essas violências que vem ocorrendo no mundo online e dentro dos feminismos.

[3] Margarita Pisano. Fantasear un Futuro, introducción a un cambio civilizatorio. Editorial Revolucionarias. Chile, 2015.

[4] Sonia Johnson. Going farther out of our minds. Vídeo no youtube. Também “Tirando os nossos Olhos dos Homens”. Tradução em radfeminismo.noblogs.org

[5] “A política de reivindicações, por mais que sejam justas, por mais sentidas que sejam, é uma política subordinada e da subordinação, porque se apoia sobre o que resulta justo segundo a realidade projetada e sustentada por outros e porque adota, logicamente, suas formas políticas” (Librería de Mujeres de Milán. No Creas tener Derechos. Madrid. 1991).

[6]Amauri Ferreira. Introdução à Filosofia de Nietschze. Editora Yellow Cat Books, 2010

[7] Margarita Pisano abordou a questão dos preconceitos em Segredos, Chantagens e Rumores: Os preconceitos. Mas também quem desenvolveu muito o tema do rumor e das calúnias, e há uma parte sobre preconceitos, embora tenha minhas críticas, é Leandro Karnal em Detração: Breve ensaio sobre o Maldizer. Editora Unisinos, Vale do Rio do Sinos, 2016.

[8] Wittig fala que lésbicas escapam à mulheridade, ao não submeterem à exploração heterossexual que caracteriza a classe das mulheres. Esse escapar deposita a lésbica na ininteligibilidade social e no medo que despertam. No entanto tal lugar é potente justamente por isso. (Monique Wittig. O Pensamento Heterossexual e outros ensaios. Editorial Egales. Barcelona. 1992).

[9] Conheci o conceito de corpos abjetos e abjeção com Judith Butler, mas na verdade ela retirou esse conceito de Julia Kristeva, psicanalista francesa, no livro Poderes do Horror. A abjeção, a outridade, o estranho, o ‘anormal’, desorganiza a identidade pessoal e gera profundas ansiedades paranóicas: “De acordo com Julia Kristeva, o abjeto é aquilo do que o eu deve se liberar para vir a ser um eu. Uma substancia fantasmática, alheia ao sujeito, mas íntima a ele, tão íntima que sua proximidade produz pânico. O abjeto aponta para a fragilidade de nossos limites corporais, para a precariedade da distinção espacial entre dentro e fora, assim como para a passagem temporal do interior do corpo materno a exterioridade da lei do pai. Espacial e temporalmente, a abjeção é uma condição na qual a subjetividade é problematizada e o sentido entra em colapso.(…)” “..como num teatro verdadeiro, sem disfarce e sem máscara, o dejeto como o cadáver me indicam aquilo que eu afasto permanentemente para viver. Porque a abjeção é, em soma, o outro lado dos códigos religiosos, morais, ideológicos sobre os quais repousam o sono dos indivíduos e a calma das sociedades” Em https://www.eba.ufmg.br/grupo/textopiti01.htm

[10] Mary Daly. Gin/Echology. The Metaethics of Radical Feminism. Beacon Press; Boston. 1978.

[11] Maria Lúcia Karam. A esquerda punitiva. In: Discursos Sediciosos: crime, direito e sociedade, ano 1, número 1, 1º semestre de 1996. Disponível em https://we.riseup.net/radfem/esquerda-punitiva

[12] “Portanto, é concebível que um grupo possa ser revolucionário do ponto de vista do interesse de classe e dos seus investimentos pré-conscientes, mas não sê-lo do ponto de vista dos seus investimentos libidinais, e manter-se até mesmo fascista e policial. (…) o ponto de vista do investimento libidinal, nota-se bem que há pouca diferença entre um reformista, um fascista, às vezes até certos revolucionários, que só se distinguem de maneira pré-consciente, mas cujos investimentos inconscientes são do mesmo tipo, mesmo quando não esposam o mesmo corpo.” (Deleuze e Guatari. O Anti-Édipo – Capitalismo e Esquizofrenia. Editora 34 Ltda. São Paulo, 2010)

[13] Um artigo genial sobre Linchamento foi escrito por Marcia Tiburi para a revista Cult. Pode ser lido em:  http://www.geledes.org.br/linchamento/. Também é interessante seu texto sobre o “Poderzinho”, que também se encontra no site da revista Cult, para agregar nessa reflexão, uma vez que essas ações no movimento social e na vida são motivadas pelo interesse de micro-poderes compensatórios por parte de oprimidos.

8 de março também é das sapatão!

labrysludista
8 de março é uma data que remete às mulheres trabalhadoras que foram queimadas por patrões numa fábrica como repressão por protestarem e realizarem uma greve auto-organizada apenas por mulheres contra a extrema exploração e injustiça do sistema capitalista, mostrando que, desde os tempos da caça às bruxas e inquisição, mulheres resistentes a sistemas opressivos vem sendo queimadas e assassinadas. Muitas dessas resistentes foram também as lésbicas, que como Adrienne Rich coloca, “antes que existira ou pudesse existir qualquer classe de movimento feminista, existiam as lesbianas, mulheres que amavam a outras mulheres, que recusavam cumprir com o comportamento esperado delas, que recusavam definirem-se em relação aos homens, aquelas mulheres, nossas antepassadas, milenares, cujos nomes não conhecemos, foram torturadas e queimadas como bruxas”A História segue se repetindo, e o mecanismo político da fogueira e do estado de genocidio do povo político das mulheres – que é o Patriarcado – segue se dando e é preciso lutar contra ele.
Integrar uma resistência política não vem sem ataques por parte dos opressores. Definimos a Lesbofobia como um aparato de repressão a serviço da Heterossexualidade Compulsória, regime político que obriga a conformidade das mulheres nas classes sexuais de modo a manter sua exploração pela classe dos homens por meio da violência, invisibilização, aniquilamento.
Como o 8 de março é uma data histórica que fala da mulher trabalhadora, queremos falar aqui da lésbica trabalhadora, que nunca é pautada na data:
A Lesbofobia precariza economicamente a vida das lésbicas. Muitas vezes vivendo em diáspora, fugitivas da classe mulher, fugitivas e expulsas de instituições patriarcais como a família, possuem recursos de sobrevivência limitados. Diferentemente das companheiras e de suas parentes heterossexuais, muitas vezes tem que sair de casa cedo, ou de suas cidades de origem, onde existem poucas como ela, expulsas pela força da discriminação e da ameaça de violência que são constantes nas vidas lésbicas. Isso faz com que não terminem seus estudos e tenham que buscar empregos precarizados para pagar o aluguel ou custear sua vida longe de seus agressores. Em entrevistas de emprego, não é contratada pelo seu aspecto pouco feminizado: por ter cara de sapatão. No ambiente de trabalho, vive escondida ou sofre demissões por ser lésbica visível ou por descobrirem que o é. Na sua carência de recursos materiais e de afeto se torna dependente emocionalmente nas suas relações afetivas, pois funcionam também como apoio mútuo e sobrevivência. Estas relações não são reconhecidas nem apoiadas economicamente pela família, ou pelo Estado, ou pela Sociedade. O isolamento em um casamento lésbico pode torná-la dependende da companheira por compartilharem recursos materiais, e se caso a lésbica se encontra em situação de violência doméstica, esta situação é totalmente invisibilizada na sociedade, o que torna ainda mais difícil para uma lésbica vítima sair da situação. Ao buscar denunciar, a lei Maria da Penha falha enormemente com lésbicas, que são caçoadas por policiais nas delegacias ao fazer o boletim de ocorrência e a discriminação torna arriscado romper com o silêncio. Se possui crianças, o Conselho Tutelar tenta muitas vezes tomá-las por considerar a mãe lésbica uma indecente. Nos trabalhos, a Lésbica tem que provar ser ainda melhor que seus e suas companheiras heterossexuais, tendo que se esforçar duplamente para ganhar aceitação e não ter seu trabalho mau reconhecido em função de  sua sexualidade. O excesso de trabalho e o  sofrimento da invisibilidade afetam a saúde mental das lésbicas que padecem de ansiedade, depressões,e outros adoecimentos comuns gerados no ambiente laboral. O assédio sexual (estupro corretivo) no trabalho e a fetichização das lésbicas também são uma realidade do Terrorismo Sexual supremacista masculino. Se a lésbica é também negra, sofre ainda mais em termos de objetificação, exclusão, discriminação e precarização.
Acreditamos que o Capitalismo Heteropatriarcal e a Supremacia Masculina devem ser abolidas. Acreditamos na Lesbianidade não como orientação sexual, mas como um ato político de resistência e um projeto político de um mundo onde todas as mulheres possam ser livres. Sendo o modelo econômico existente uma imposição dos patriarcas brancos, queremos a destruição dele, parar o modelo econômico predatório que estupra[1] a Terra com o agronegócio e envenena os alimentos e recursos hídricos, mata animais e populações nativas, para favorecer a apoia mútua e resgatar o respeito ao meio ambiente.
8 de março não é dia para festejar a ‘mulheridade‘. Lésbicas são o conceito da fêmea[2] selvagem antes de sua apropriação pela classe dos homens, que a encerra na categoria Mulher. Somos fugitivas dessa classe e desse conceito. Não queremos flores, queremos molotovs contra o Heteropatriarcado e todas suas instituições opressivas, em solidariedade também com as demais espécies do planeta.
Contra o Heterosistema Racista, Classista, Especista, pela abolição das classes sexuais e econômicas, 
Pela Autogestão das Mulheres
Rebeldia Lésbica!
Sapatões Proletárias, Periféricas, Negras, Radicais e Autônomas, na Luta!
[1] Consideramos certo dizer que a terra é estuprada pelos grandes latifúndios e por todo processo de envenenamento, monocultura e reprodução forçada da qual é obrigada e a desertifica, a mata, para enriquecer patriarcas carnívoros que se apropriaram das terras, e porque a Terra e sua vida é identificada frequentemente, desde as mitologias ancestrais, com as Mulheres, sendo o ataque às Mulheres e ao Meio Ambiente expressões simultâneas e de um mesmo ódio patriarcal contra valores biofílicos. Estamos usando estupro como metáfora muito concreta do que vemos que ocorre com os ecosisstemas, violentados pelos machos. Acreditamos que a violência desse processo de destruição ambiental e seus impactos constitui um dos ritos e pilares fundamentais da Masculinidade. Sabemos de todas problematizações sobre o uso da palavra estupro, mas a usamos em demonstração de sororidade com a Planeta e não exclusão desta de nosso feminismo, representando nossa posição ecolesbofeminista de defesa da Matriarca/Deusa Terra. Não queremos medir palavras. Precisamos gerar consciência e sensibilidade e falar a verdade.
[2] Sabemos que as mulheres negras problematizam o conceito de fêmea. Aqui tentamos utilizar o termo fêmea não na sua conotação patriarcal pejorativa e especista de mulher não-humana, mas justamente o estado da pessoa que se considera hoje mulher, antes do acontecimento histórico que cria as classes sexuais homem e mulher. Isso não quer dizer que não vemos o conceito de mulher como politicamente útil e imprescindível para reconhecer o estado de opressão e a única e exclusiva sujeita do feminismo, apta para abolir e superar o Gênero por meio da destruição das classes sexuais, e pela necessidade de nos remeter a esta materialidade política.
[3] Com respeito ao termo proletária, posteriormente foi problematizado como heterocentrado, porque proletária se refere à prole, coisa que somos contra (reprodução). Também não excluímos desta definição as lésbicas autogestivas porque consideramos ‘trabalho’ no sentido de produção dos meios de vida. Estamos aqui como anti-trabalho, se trabalho se considera no sentido do capitalismo atual, queremos destruí-los.[4] As questões levantadas aqui sobre as lésbicas e suas questões com o trabalho e sobrevivência foram a síntese de questões surgidas em nossos grupos de autoconsciência, o interesse em aproveitar o tema da data também se encontrou com questões que apareciam na nossa grupa e uma tentativa de sair dos pequenos espaços de encontro para levar para o mundo público e para a ação política.

pensamentos sobre lesbofobia

Lesbofobia por parte de mulheres/feministas não passa de uma forma específica de misoginia do colonizado. Afinal a lesbofobia/ódio às lésbicas é uma forma de misoginia especial, serve à heterossexualidade compulsória e a mantêm, mantêm as mulheres na linha, ligadas à classe masculina. Tudo que indica separação dos machos é atribuído às lésbicas e tudo que é relacionado a possibilidade do separatismo e ao lesbianismo é visto como demasiado radical e extremo, demasiado ameaçador pro estatus quo, pra zona de conforto. O pensamento radical lésbico é então, demonizado e as lésbicas feministas queimadas na fogueira da misoginia, porque é ‘revolução demais’, é ir longe demais… isso não é permitido pro povo colonizado que são as mulheres. O pensamento lésbico representa então uma ameaça às bases do patriarcado, a heterossexualidade, logo a lesbofobia é uma forma de misoginia e de dominação sobre as mulheres para não permitir sair do cerco da heterossexualidade compulsória e as doutrinas perpetuadoras da sua ordem.

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a palavra lésbica pro queer e pro anarquismo/lésbicas anarquistas ou queer é nojenta. todo o tempo tentando apagar essa palavra, com queer, com masculinidades femininas, com o que for no lugar, podem se chamar de tudo menos de lésbicas. Essa palavra é mal vinda em todo lugar, até mesmo dentro do ‘feminismo’. ideologias profundamente lesbofóbicas e anti-lésbicas. sempre se colocando também contra relações profundas entre duas mulheres e patologizando como se fossem ‘monogamia’, ‘dependência’ e ‘feminilidade’, ‘possessividade’. Definitivamente as pessoas precisam entender que a realidade lésbica necessita uma epistemologia, análises, próprias, não podem importar da análise das relações heterossexuais. O contexto das relações e até mesmo das violências que se dão entre lésbicas está permeada pelo contexto lesbofóbico, tudo temos que ler tendo em mente a lesbofobia, até os supostos ‘ciúmes’ (insegurança num mundo de relações instáveis, de abandono familiar, de ataques a suas relações, de ser deixadas por lesbofobia internalizada, etc), isso não é pra desresponsabilizar, mas pra poder acolher esses casos todos sem reproduzir mais violencia lesbofobica contra essas sujeitas. E definitivamente: escrachos e difamações de lésbicas por terem tido relações difíceis e conturbadas (etiquetadas por autoridades morais cristãs do ‘feminismo’ – que as vezes está mais pra um movimento pela feminilidade – como relações ‘violentas’) é pura expressão de lesbofobia e ódio à lésbicas. Sempre a lesbofobia escondida das pessoas encontra um meio de se manifestar e aí nessas situações vem a tona, as grandes vontades de jogarem pedras nas sapatões. Como se fosse fácil pra estas construir modelos saudáveis num contexto de tanto ódio e ódio internalizado.
Meu compromisso é com as lésbicas.

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também: é lesbofobia idealizar as relações e realidade lésbica, e colocá-las de forma objetificada e fetichista como ocorre no lesbianismo político. é uma lesbianidade definida e colocada para o ‘het gaze’ para o olhar heterossexual, e não definida pelas mesmas, é uma lesbianidade fora de si mesma, definida por outras. é lesbofóbico idealizar e colocar tantas expectativas na lesbianidade e depois se voltar contra lésbicas porque não foram o paraíso idílico que estava posto pelo lesbianismo político ou por sua imaginação, como abrigos da supremacia masculina. sim que são abrigos no mais das vezes, mas essa existência e esses vínculos entre lésbicas e mulheres são fortemente atacados pelo patriarcado por representar uma ameaça direta a este, então logo é esperar demais de uma comunidade que sobrevive contra mil dificuldades, seria estranho se todas lésbicas estivessem bem, se não reproduzissem violências traumáticas deixadas pelo agressor, se não tivessem suas mentes conturbadas pelo contexto de violência em que vivem.

as lésbicas tem que ser obrigadas eternamente a performar e provar pro mundo suas relações, as relações lésbicas tem que ser perfeitas, tem que simbolizar tudo de ‘lindo e fofo’, ‘cor de rosa’ que se supoe que deveria ser as relações entre ‘mulheres’. Já que mulher né, é o sonho de feminilidade, bondade e doçura, assim deviam ser as lésbicas e suas relações. Aì quando as feministas encontram sapas feias, gordas, peludas e agressivas, bravas, elas detestam! E acusam a gente de ferir o feminsimo ou a imagem da lesbianidade!
Eu não tenho que provar nada para a heterorrealidade! Nos deixem com nossos problemas! Sâo séculos de massacre estamos tentando encontrar soluções e nos curar! E aceite: sem sua ajuda! Sem mais colonizador*s!

Entendo o heterossexismo em um ambiente somente-Lésbico

Quando você está num ambiente somente-Lésbico, é muito mais fácil de se entender as Lésbicas – porque, pela primeira vez, nós estamos visíveis umas para as outras e temos mais liberdade para sermos nós mesmas. É como se colocar adiante no foco, pra fora da obscuridade de estar no pano de fundo das vidas heteros. Nós não temos que estar constantemente lutando a violência masculina e o ódio à Lésbicas das mulheres heterossexuais, então nós podemos saber mais sobre quem nós somos. No Centro Lésbico e nos encontros somente-Lésbicos em Whannganui-a-Tara, estava claro que ali haviam outras hierarquias de poder sobre nós que incluíam, mas que eram diferentes de, racismo, etnicismo, e classismo. Um monte de Lésbicas na minha comunidade nunca foram heterossexuais na vida e algumas falavam sobre isso como algo muito importante para elas, e como uma opressão. Eu estive junta com outras três Lésbicas ex-hetero para discutir o que heterossexualidade passada significava e como isso dava à nós privilégio agora que nossas amigas Lésbicas nunca-lésbicas e amantes não tinham.


Maior parte das Lésbicas ex-heteros que eu conheci de outros lugares pareciam achar essa idéia impensável, mesmo que as Lésbicas nunca-heteros estejam em todos os lados. Mas numa comunidade onde muitas Lésbicas falam sobre o privilégio hetero de mulheres, era lógico que algumas de nós aplicaria essa idéia à Lésbicas de forma a explicar nossas diferenças. Talvez Lésbicas reacionárias estrangeiras achem difícil imaginar que Lésbicas de um país que elas rebaixavam como ‘retrasados e ignorantes’ poderiam ter políticas mais Lésbicas-identificadas e radical que as suas. Depois de tudo isso, se Aotearoa significaria dizer estar tão ‘atrás’ comparado à países ‘sofisticados, altamente civilizados’ como Inglaterra e os E.U.A., você esperaria que nós tivessemos políticas podres também. Mas o oposto está mais próximo da verdade – pessoas de nações menos poderosas muitas vezes possuíam políticas mais radicais. A rabugentice sapatão e a auto-confiança são encorajadas por viver em lugares em que as coisas não são dadas todas na mão, onde temos que fazer as coisas por nós mesmas enquanto vamos adiante porque não temos auto-intitulados líderes chefiando-nos – ou qualquer uma de nós faz o trabalho porque há tão poucas de nós.
Em uma comunidade Lésbica pequena, Sapas devem confiar umas nas outras mais ainda. Lésbicas privilegiadas costumam ter menos tendência a formar panelinhas (embora isso sim aconteça). Sapas de diferentes contextos e que saíram do armário de diferentes formas tendem a misturar-se juntas mais. Isso significa que eu tive sorte de estar rodeada de muitas sempre-Lésbicas, Sapas Velhas, Butchs e nunca-heteros. Eu não 
digo que essas Lésbicas não fossem oprimidas – elas eram, mas Lésbicas ex-heteros que saíram do armário no Movimento de Libertação de Mulheres, como eu e minhas amigas, socializadas com, sido amigas de e amantes de, e trabalharam juntas dessas Sapas. A mais amante das Lésbicas de nós aprendeu sobre suas experiências Lésbicas e lutou sua opressão. Em comunidades maiores – em grandes cidades de países largamente privilegiados – esta mistura é mais difícil de ocorrer. É uma verdadeira vergonha, porque as Lésbicas ex-heteros do Movimento de Libertação das Mulheres tendem a ficar juntas, reforçando à lesbofobia umas das outras. As coisas não são perfeitas em Whanganui-a-Tara, mas eu estive chocada com as histórias que eu escutei de Lésbicas retornando a suas casas depois de estarem em Londres e outros lugares, sobre a intensa suspeita de Lésbicas feministas das Sapas não-femininas. As linhas não foram desenhadas tão rigidamente na minha comunidade de origem.

Como uma Lésbica ex-hetero que saiu do armário no Movimento de Libertação das Mulheres em 1975, meu foco, como o de muitas outras, costumava ser o de ‘ajudar outras mulheres a se assumirem lésbicas’ (inocentemente esperando que mulheres heteros o quisessem também!), e ‘lutar a opressão das mulheres’. Pelos finais de 1976, eu descobri que eu estava considerando mulheres heteros mais importantes que as Lésbicas e que meu foco deveria ser nas Lésbicas, que estavam já fora do armário e assumidas. Eu tive um crescimento e amadurecimento – o do auto-sacrifício feminino. Tudo que eu fiz desde então foi de uma Lésbica assumida para OUTRAS lésbicas. Qualquer trabalho de doação de mim mesma que eu fiz foi para outras lésbicas. Mudando o foco das mulheres heteros para as Lésbicas me levou inevitavelmente a aprender mais sobre o Heterossexismo.

Ruston in Dykes-Loving-Dykes: Dyke Separatist Politics for Lesbians Only, Battleaxe. 1990.

Repetição

 

Moradora do Condomínio, uma favela no fundão do Jardim Ângela que fica exatamente no jardim Vera Cruz, é onde mora Paulão. Paulão só tinha até a oitava série por isso ganhava a vida construindo casas. O serviço era registrado em carteira de trabalho, mas Paulão sonhava com mais, sonhava em não ter patrão sonhava com autonomia. Então largou tudo e foi trabalhar com vendas ambulantes.

Camiseta listrada, bermuda, rabo de cavalo baixo preso pelo boné, com essa vestimenta foi para o centro da cidade de São Paulo, em frente a galeria do rock vender seus materiais:  cd´s com gravações em mp3 de discografia de diversos artistas. As dez da manhã chegam a primeira cliente e fala:

– Oi, você tem Siouxie And The Banshees?

– Não. Mas acho que você vai curtir esse som aqui ó: Joy Division.

A freguesa se empolga e compra e compras as discografias da The Cure, The Smiths e New Order. E Paulão faz vinte reais na primeira venda. Logo depois chega seu melhor amigo e concorrente o Igor. Juntos eles vendem diversos cd´s em MP3 de músicas de rap, MPB, mas a especialidade dos dois é mesmo o rock, por isso a escolha deste ponto. Duas da tarde foram almoçar em um restaurante que serve prato feito na av. Ipiranga, porque é o mais barato da região, custa sete reais e cinquenta centavos. No prato feito tinha arroz, feijão, ovo salada e até batata frita. Logo depois do almoço seguem para a praça ramos e acendem um baseado. Encontram por acaso Daiane, uma lésbica que trabalhava de operadora de telemarketing na Rua Dom José de Barros.

– E ai, como vocês estão?

– Tudo bom! Tenho uma novidade, meu eu virei camelô, to vendendo cd de mp3 da uma olhada aí

– To bom me mostra só os de rap

– Ta aqui ó

– Pronto já escolhi: Facção Central.

– Beleza, fica $5,00

– Ta na mão.

Paulão e Igor se despedem de Daiane e voltam para frente da galeria do rock e expõe seu material de trabalho. Quando de repente alguém grita:

– Olha o rapa! Olha o rapa! Olha o rapa!

Nem dá tempo de correr a polícia chega e enquadra os dois e Paulão diz:

– Aí não! Tem que ser feminina pra me revistar!

O policial sarcástico pergunta:

– Ué, você é homem ou mulher?

Com muita raiva de pertencer ao gênero feminino, por perceber a desigualdade com que é tratada, mas transmitindo calma, Paulão afirma:

– Sou mulher!

Não tarda a chegada da policia militar feminina. Pedem as notas fiscais dos cd´s e como não tem a policia apreende o material dos dois amigos vendedores ambulantes.

Com um sentimento de revolta misturado com impotência frustração e melancolia, Paulão volta ao extremo sul de São Paulo. Pede carona em um ônibus até o jardim Ângela e depois pede carona novamente até o jardim Vera Cruz. Quando desce no ponto de ônibus já ouve o som do funk proibidão estrondando, mas sabe que hoje não é dia de baile. Rumo ao seu lar, avista sua namorada Jessica com um grupo de amigas, passa e cumprimenta todas com um beijo no rosto e logo vai para a casa. Virou a esquerda, à direita e a esquerda de novo. Em frente ao córrego fica a porta de seu barraco. Quando entra avista único cômodo limpo e arrumado, sente que precisa relaxar e manter a calma. Só quer se desligar da realidade um minuto. Enquanto come assiste televisão.

Jessica chega em sua casa beija e abraça sua amada e Paulão lembra o doce da vida… E diz:

– Preciso te contar o que aconteceu

– Então fala

– Eu saí do serviço e fui trabalhar de camelô e ai a PM levou meu material hoje.

– Você o que?! Meu você enlouqueceu! Como assim largar um trampo firmeza pra ser camelô? Você ta doida!

– Eu não quero falar dos meus motivo agora

– Foi a pior merda que você fez, você não devia ter feito isso!

– Já falei eu não quero mais falar disso

– E agora, como agente vai pagar as contas, você não devia ter feito isso porra!

Paulão, irada grita:

– Chega! Não vou mais falar disso agora!

Paulão sabia que Jessica ia reagir assim, mas esperava dela um pouco mais de compreensão. Ela estava muito brava, bateu a porta do barraco e foi em direção ao bar do seu João. Não bebeu nada aquela noite, só assistiu os resultados dos jogos de futebol na última rodada, necessitava apenas de um lugar para esfriar a cabeça. Jessica foi tomar banho, muito preocupada com as contas a pagar, o mais imprescindível era o aluguel do barraco. Se qualquer coisa desse errado em sua vida de casal, Paulão poderia voltar a morar com a família, Jessica não.  Quando a mãe de Jessica descobriu que ela namorava com Paulão  ela levou uma surra tão grande que ficou roxa um mês, jogou suas coisas na rua e disse que não aceita dentro de casa filha sapatão.

Paulão chegou a sua residência viu Jessica só de toalha e decidiu se banhar também. Assim que terminou o banho se deitou ao lado de Jessica. O aroma que a nega exalava a hipnotizava queria ficar mais perto, mas depois daquela discussão receou-se. Seu instinto deu coragem e usou palavras pra mostrar sua vontade:

– Fica comigo?

– Não to afim!

Paulão abraçou Jessica de conchinha e insistiu ao pé do ouvido:

– Vamo gata aproveitar essa noite que na vida tudo passa

– Não quero to menstruada

– Eu não ligo te curto de qualquer jeito amor

Jessica já não tinha mais voz pra dizer não, apesar de seu corpo todo se opor, foi beijada. Paulão adorava suas curvas se deliciava com a maciez da pele a fragrância e a nudez ofertava a pujança que instigavam ter aquela mulher em suas mãos…

Satisfeito seu ego mais do que seu desejo Paulão, ao amanhecer foi dormir com o eco da voz que mais lhe condenou no dia anterior. Jessica gozou e antes de adormecer tinha certeza absoluta de que não queria ter transado aquela noite.

 

 

 

Por FORMIGA