A feminilidade e a nudez não consentida de nossas corpas radicais

A feminilidade é um sistema de tortura autoempregada extremamente violento e estrutural, parte do espectro da naturalização do conceito “mulher”. Seria no mínimo irônico se não fosse trágico o fato de esse enquadramento ser, no fim, a coisa mais antinatural em todos os sentidos, porque artificializa todos os aspectos da existência das mulheres: criando uma estrutura psíquica debilitada, plastificando suas corpas por completo sob um olhar racista, pedófilo, pornográfico e fetichista, aniquilando a significação positiva da solidão, impondo um sentido hegemônico para uma diversidade de corpas e vivências, sabotando o prazer e a autonomia das mulheres, romantizando a submissão e erotizando a dor e a brutalidade.

E para a lésbica é este um dos fenômenos que a leva a apreender outro tipo de autoflagelo: o ódio internalizado por si mesma, por sua corpa que não se enquadra nas caixas apertadas do processo de feminilização. Não necessariamente pela lésbica nutrir o desejo de aceitação através do enquadramento, mas pelo fato de enxergar com clareza que está à margem da sociedade.

Florescendo as características selvagens que levamos em nossas corpas, rejeitamos o padrão que impõe que devemos manter corpos e comportamentos infantis, e permitimos que nossos pelos cresçam. Em repúdio à indústria estética – que além de transformar as mulheres em bonecas e produtos para associá-las ao consumo masculino, explora animais e desperdiça recursos naturais como parte de seu processo lucrativo – negamos a máscara compulsória da maquiagem e dos produtos de desespero por características que não são nossas; dentre todos os aspectos de nossa existência lésbica, que já nos leva a rejeitar por completo a cultura que romantiza e absolve o macho de seu comportamento hierárquico inerente, bem como qualquer possibilidade de acesso à afetividade íntima e às nossas corpas, somos identificadas e posicionadas pelo olhar heteronormativo como as que estão e devem continuar marginalizadas. Somos uma ameaça. E esse deslocamento ocorre não só nos meios bem dentro da burocracia do sistema (lesbofobia institucional) como generalizadamente.

Por isso, presenciar a situação do padrão branco heterocentrado de feminilização é desgastante, porque ao enquadramento da HT segue-se a exclusão da lésbica, afinal está a própria normatizada sustentando a relação de poder, por reproduzir sistematicamente o discurso e o olhar que intenta provocar-nos uma sensação de nudez não consentida, de inadequação por estarmos existindo e nos locomovendo com corpas autoconscientes. Trata-se de mais uma das situações em que a corpa lésbica paira sem terra. Tal isolamento é uma forma de violência, e é essencial para a saúde das lésbicas a disposição para a desconstrução de tudo o que é bebido em fonte patriarcal e a manutenção de espaços de convivência.

!Vida longa ao sapatonismo radical!

 

– raposa

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