Corpa trancada em natural, Corpa ofendida pelo discurso banalizado

Um dos processos mais violentos da estrutura opressora do patriarcado é a possibilidade de distorção e eufemização do que é percebido visceralmente como nocivo pela corpa declarada sua arqui-inimiga: a lésbica. O recorrente discurso naturalizante (políticas queer/pensamento pós-moderno) combinado com a superficialização do intrínseco político que há no ser lésbico são duas faces de uma mesma moeda, de um jogo de silenciamento que tem como função tornar invisível a experiência que trucida a lógica heterossexualista e fascista do patriarcado: a experiência da lesbiandade, além de, é claro, prejudicar a existência lésbica.

Essencializar a vivência é uma tática óbvia para impossibilitar as mulheres de se identificarem com outras mulheres integralmente e escapar, inclusive, à própria categoria mulher, este ser construído a estar passível de toda sorte de violência; é este o backlash fantasiado de “cientificização” afim de tirar-nos a possibilidade de questionar a heterossexualidade como regime compulsório e de rejeitar esta vivência por desconstrução e como decisão política existencial, afinal “nascemos assim”. Faça-se apenas uma simples pergunta: como se considerar NATURALMENTE heterossexual numa sociedade em que a heterossexualidade é compulsória?

A naturalização da heterossexualidade é uma violência contra nossas corpas por vir carregada de inúmeras táticas de coerção. Pensar este fenômeno como simplesmente contato-relação entre dois seres-bolha é a chave de ouro do patriarcado, pois é aí que se ignora todo o processo social-político-cultural-psicológico que sustenta a relação de poder da classe dos homens sobre as mulheres e fomenta uma sociedade extremamente nociva às lésbicas.

É recorrente, por outro lado, a banalização da radicalidade lésbica e da identificação de nossas corpas num processo político que rola por conta da distorção, ou talvez falta de profundidade no que se entende como escolha, e escolha político-existencial. Talvez por vivermos na lógica do consumo tenhamos também a tendência de objetificar a experiência a ponto de descrevermos nossa escolha pela ótica dum tremendo imediatismo, sem levar em conta o fato de que a lesbianidade não é uma camisa que se veste da noite para o dia sob o lema “agora serei lésbica porque faz sentido para mim”. Não se trata de uma escolha tão deliberada, nossa sexualidade não é um produto, trata-se de um desenrolar de percepções, com toda a certeza, trata-se de um processo de conscientização, trata-se de um mergulho em incontáveis desconstruções e na vivência, inclusive, de enxergar que as ferramentas de tortura do patriarcado são muito maiores do que poderíamos imaginar antes da retomada de nossas corpas (à lesbianidade).

Ser lésbica é abrir os horizontes para notar a toxicidade deste regime em que vivemos, a violência com que atinge nossa saúde psicológica, física, afetiva e social, a hierarquia com que contamina as relações, a linguagem e a dinâmica da comunicação entre as corpas e permitir-se uma forma alternativa da vivência prática cotidiana: a da resistência e existência lésbica.

 

– raposa.

 

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