A palavra lésbica e seus espaços exclusivos vem sendo omitidos, excluídos, atacados, difamados, apagados dentro dos espaços e discursos feministas hegemônicos. Isso acontece porque a lesbiandade é uma proposta rebelde que o sistema patriarcal não comporta, e portanto os feminismos bem-comportados, reformistas, subordinados às prerrogativas masculinas, não bancam nem querem bancar enquanto proposta política crítica que consegue até mesmo ir para além do próprio feminismo em potencial transformador.
Essa omissão da lesbiandade e as tentativas de suavização dessa política, além da submissão do feminismo na tentativa de ser aceitável aos homens, ocorre como consequência da própria opressão das mulheres e como reflexo fiél da Heterossexualidade Compulsória. Damos o nome de ‘heterofeminismo’ a toda suposta manifestação de ‘feminismo’ que se encontra atravessada pela lógica heterossexual – a lógica de que mulheres pertencem aos homens, de que homens devem ter acesso irrestrito aos nossos corpos, territórios e vida, a doutrina sistemática de que a relação entre opressores e oprimidos homem e mulher são inevitáveis, naturais e produtos do ‘desejo’ e não relações políticas de dominação. O tal desejo heterossexual não passa de uma tentativa de naturalização de uma relação de opressão entre os sexos. Esse “desejo” – quando existe (se é que existe) – é construído e doutrinado e forçado por uma série de mecanismos políticos: educação, mídia, família, terror psicológico. As mulheres se relacionam com homens porque eles detêm os recursos para sobrevivência destas em todo o planeta, sendo eles quem detêm poder político, recursos materiais, condições econômicas e simbólicas. Portanto o consentimento das mulheres nas relações heterossexuais é produzido pela relação de poder entre classes sexuais nas quais estas se encontram.
Esses ‘feminismos’, resultados da colonização das mulheres como grupo pelos homens, não pretendem qualquer desafio real e radical à supremacia masculina, senão que pede por meras reformas e algumas negociações com o Poder, além da reforma impossível dos nossos agressores e opressores. Não cosideramos nossa liberdade negociável com os patriarcas.
Tendo em vista que os espaços feministas são dominados pela heterossexualidade dominante e hegemônica, se torna confortável para a ordem patriarcal, que também se expressa nesse feminismo que sejamos colocadas sempre ao lado das bissexuais e de mil outras categorias políticas, enquanto uma “Diversidade Sexual” na ampla gama de cores de um alegre arco-íris, de modo a abafar o ruído e o estrondo que a palavra lésbica promove, de modo a esconder que a possibilidade de uma existência sem homens, também escondendo que a lesbiandade é uma condição política muito mais rebelde e subversiva do que qualquer outra dessas categorias do GBTTQIetc que não apresentam qualquer ameaça ao Patriarcado, se não é o caso de que as mantêm: se bissexuais mantêm a instituição da heterossexualidade, trans e travestis mantêm o genero e homens gays são homens.
Somos deslegitimadas e tratadas como diversidade sexual e não como mulheres que fugimos da condição de subordinada e recusam a relação com os opressores, como se fizéssemos parte de uma ampla gama de meras práticas sexuais e “identidades” – muitas vezes supremacistas masculinas como sadomasoquismo, “prostituição”/estupro pago de homens sobre mulheres vulnerabilizadas, abuso sexual infantil, heterossexualidade/bissexualidade, e outras – aparentemente coexistentes entre si e com o sistema, nos definindo novamente enquanto sexo. Lésbicas não somos Diversidade nem festa, somos pura fúria contra os patriarcas. Enquanto expressão política da Sexualidade da Desigualdade, jamais haverá revolução enquanto mantemos a Heterossexualidade intacta e inquestionada. Queremos destruí-la pela autonomia das mulheres!
O feminismo hegemônico/heterossexual é resultado da colonização dos homens. A prerrogativa heterossexual se expressa em como estes feminismos, ao invés de constituírem-se em um movimento feminista autônomo em si, termina prestando-se como ferramenta de homens gays (LGBT/Queer/Liberalismo Sexual) ou homens de partido ou homens em cargos de governo ou machos da esquerda anarquista e marxista, na ilusão de que poderá galgar alguma ascensão dentro das estruturas do Poder Masculino. Isso representa o que a Supremacia Masculina consegue fazer com todos desafios à sua ordem: absorver as resistências e tranformá-las em auxiliares do Opressor, desvitalizando a rebeldia e impedindo a radicalização das lutas.
Vemos a lesbiandade como resposta enquanto ética radical de identificação entre mulheres e de descolonização, e como paradigma do que é o feminismo levado às últimas consequências. Enquanto um certeiro ataque à falorealidade, representa o rompimento/separação com a Cultura Masculina, consistindo para além de mero afeto sexual , na criação de outra realidade, outra existência para nós. Escolhemos a lesbiandade revolucionária porque vemos ela enquanto único desafio sério à colonização masculina.
Não podemos querer revolução se não revolucionamos o íntimo, o privado e o público. Se não nos propomos verdadeiramente a uma mudança radical e total, assumindo-nos como contra-ataque e reagindo com a nossa união, nos conectando com nossas iguais, criando uma comunidade lésbica que nos dê a segurança de saber que não estamos sós, que somos muitas, mesmo que muitas de nós ainda estejamos isoladas, não venceremos o heteropatriarcado. Precisamos nos unir para revolucionarmos, para colocarmos em prática o nosso contra-ataque. Necessitamos uma lesbiandade combativa contra o Terrorismo Masculino.
A proposta dessa virada lésbica é ser uma intervenção que traga a discussão da lesbiandade – uma ferramenta de luta e existência por fora da realidade masculina – e crie um espaço lésbico alternativo, questionando a exclusão da palavra lésbica por parte do feminismo hegemônico e sua lógica heterossexual, e propondo a união entre lésbicas.
Mesmo no meio feminista ainda precisamos pedir licença para existir, e nosso nome – lésbica, sapatão, caminhoneira – não pode aparecer sozinha e em todo seu estrondo e potência. Por isso, nos convidamos onde não somos convidadas, aparecemos, nos visibilizamos, assumimos nós mesmas o papel e o desafio de gerar esse espaço.
O medo da lesbiandade radical e o ataque às lésbicas, as tentativas de distorção e suavização dessa palavra – Lésbica – é um ataque sempre ao que representa a possibilidade de rompimento com homens, evento extremamente ameaçador aos patriarcas. A hostilidade com o feminismo lésbico e a negação de espaços exclusivos é para impedir que mulheres alcancem o estado político e consciência necessária para derrubar de fato o regime de dominação masculina e para transformar suas vidas agora, neste exato instante, sem esperar por mudanças estruturais ou politicas públicas que apenas colocam um esparadrapo no problema, revolucionando sua vida desde o privado e cotidiano.
Não podemos agir em direção à revolução se nos baseamos nas mesmas estruturas que nos oprimem. Tudo que for criado nas estruturas do sistema patriarcal-capitalista-racista-elitista será exatamente como ele (casamento gay, adoção, etc, acomodação ao modelo familiar heterossexista), por mais que a aparência seja diferente. As correntes assim se afrouxam e dão a falsa impressão de liberdade, mas somente estamos nos movimentando dentro do cercado bem delimitado pelos patriarcas, o que nos mantêm domesticadas e não-ameaçadoras.
Vamos quebrar as correntes que nos prendem ao heteropatriarcado, vamos destruir os laços que ainda nos unem a essa sociedade que nos enfraquece, que barra a nossa voz! FÚRIA LÉSBICA!
Por isso tudo vamos intervir na virada feminista, reunindo as lésbicas interessadas em pensar e viver uma lesbiandade radical, como estratégia de luta, amor e vida!
O FEMINISMO SERÁ LÉSBICO/RADICAL* OU NÃO SERÁ.
SE NÃO FOR SEREMOS LÉSBICAS RADICAIS.
HERESIA LESBICA
* lésbico = radical. Diferentes palavras para designar a mesma coisa
(versão integral do panfleto distribuído durante a intervenção “Virada Lésbica” durante a Virada Feminista realizada no CCJ em São Paulo em junho de 2015.
Baixe o panfleto aqui: http://heresialesbica.noblogs.org/files/2015/03/virada-panfleto-verso.pdf )