Feminismo Lésbico e Movimento Gay: outra Supremacia Masculina, mais um Separatismo – Marilyn Frye

Feminismo lésbico e o movimento de direitos dos gays: outra visão da supremacia masculina, outro separatismo” (1F), por Marilyn Frye, do livro “Políticas da Realidade: Ensaios sobre Teoria Feminista.”. Clique para ler e aqui para baixar pdf.

 

 

as solteiras e as lésbicas

“Qualquer ataque à solteira é inevitavelmente um ataque à lésbica. O direito das mulheres de serem lésbicas depende do nosso direito a existir fora de relacionamentos sexuais com homens. Quando as lésbicas são estigmatizadas e insultadas, então, também, todas as mulheres que vivem independentemente de um homem.”

— Sheila Jeffreys, The Spinster and her Enemies.

lesbianismo como pacto entre mulheres

Lesbianismo é… acima de tudo a prática de solidariedade fundamental entre mulheres. Toda nossa vida emocional é investida nas mulheres, para mulheres, com mulheres; nós não damos qualquer benefício para o opressor… Todas mulheres devem se tornar lésbicas, isso é, ganhar solidariedade, resistir, e não colaborar. Enquanto o lesbianismo for considerado um tipo diferente de sexualidade, enquanto “desejo” for pensado como vindo de um impulso desconhecido, a idéia de lesbianismo como escolha política será visto como inaceitável (Monique, 1980)
retirado de “The Social Construction of Lesbianism”, Celia Kitzinger. 1987.

“Disseram que eu sofro homofobia”

“Nos anos 80, o hábito feminista de desenvolver uma auto-crítica pesada e análise política, aliadas à crença na possibilidade de mudança pessoal segundo os próprios interesses e os da liberação lésbica, foi substituído em alguns círculos lésbicos por uma crença na identidade ou destino invioláveis e inevitáveis, baseados em sentimentos acríticos sobre “quem você realmente é”. A ideia de uma construção social e, certamente, a ideia de que era bom sujeitar seus “sentimentos” a análise em contexto feminista, tornaram-se ofensivas para a auto-percepção de outras lésbicas. O feminismo interrompia a busca pela verdade.”

Sheila Jeffreys, The Lesbian Heresy


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[desenho por Nina Scarnia]

Por que um movimento autônomo de lésbicas

“As culturas criadas por homens excluem mulheres rotineiramente, e a identidade dos homens depende da opressão das mulheres. A cultura dos homens gays não é de fato diferente. Marilyn Frye sugere que as culturas de homens gays e homens héteros compartilham os mesmos princípios básicos de falocracia, como a presunção de cidadania masculina; idolatria do pênis; homoerotismo masculino, ou amor fraterno entre homens; desprezo por mulheres, ou ódio a mulheres; compulsoriedade do modelo masculino heterossexual; e a presunção de acesso do falo a tudo. Ela vê o potencial revolucionário das lésbicas como a rejeição desses princípios.

O amor entre homens é algo que torna obvio a maneira como homens gays e mulheres lésbicas diferem. Homens gays desejam e amam os membros da classe dominante, a classe dos homens. Nesse sentido, homens gays são leais ao princípio básico da supremacia masculina, amor/lealdade entre homens.

O direito quase universal a foder – de afirmar sua dominância individual e máscula sobre tudo o que não é ele mesmo, por meio do uso desse direito para gratificação fálica, ou auto-afirmação, em nível físico ou simbólico. Ele pode urinar ou ejacular em qualquer objeto físico, dentro ou fora, e tudo pode ser penetrado por seu pênis, seja um animal não-humano ou uma mulher.

A única limitação séria para isso, além daquelas impostas pela propriedade, é que homens não deveriam foder outros homens, especialmente homens adultos de sua própria classe social e raça. Apesar de homens gays violarem essa regra, eles são tão leais ao principio do acesso fálico generalizado quanto os homens héteros, e vão além. Frye explica que a proibição de homens foderem outros homens é uma maneira de manter o principio da masculinidade no mundo. Ela postula que, se homens tivessem a permissão rotineira de ser entre si exatamente da forma que são com as mulheres, a lealdade masculina seria afetada e a supremacia masculina seria destruída.

 

A direção geral das politicas dos homens gays é a da conquista do direito à masculinidade e ao privilegio masculino para homens gays, e promover o aumento do campo de alcance do acesso fálico até o ponto em que seja, de fato, absolutamente ilimitado. A direção geral das políticas do feminismo lésbico é destruir o privilegio masculino, desmantelar a masculinidade, reverter a busca pelo acesso fálico, colocando em lugar da regra de que “é permitido a menos que seja explicitamente proibido” a regra de que “é proibido a menos que seja explicitamente permitido”.

 

(Sheila Jeffreys, The Lesbian Heresy)

“O que significa a palavra lésbica pra mim”

“Eu sempre me identifiquei muito com a palavra lésbica, e gosto dela principalmente porque nomeia mesmo, porque é visível, nunca quis me ver como gay nem homossexual, a palavra é separatista em si. E pra mim ela expressa uma ética também feminista integral de vida e é se visibilizar para outras lésbicas. O poder deste nome pra mim tem haver com que quando você assume esse nome, assim se nomeia, é um ato de extrema coragem num contexto de lesbofobia e anti-mulher, e quando você o faz, assim como sapatão, você está visibilizando também outras lésbicas. Outras minas que se sentirão encorajadas a assumir esse nome e visão. E assim você transmite uma noção de pertencimento e uma memoria de resistência também. É pra mim impressionante o poder que tem esse nome, e por isso mesmo acho que não deve nem ser apagado, nem banalizado, deve ser defendido por nós e cuidado. E por isso que afirmamos que quem pode assim nomear-se são unicamente aquelas com vivência lésbica, e as únicas que podem também definir este nome assim como as políticas lésbicas. Ser lésbica e assim se nomear e visibilizar é também sobre honrar as lésbicas enquanto coletivo. As que nem tem voz.  Esse nome tem poder e é temido, odiado, e é ainda mais importante num contexto em que muitas andam jogando fora este nome junto ao de mulher, usando ‘queer’ pra se definir… Por isso é importante gritá-lo. Ele incomoda muita gente.”

a categoria de lesbianismo

Historiadoras lésbicas e feministas como Lilian Faderman e Caroll Smith-Rosenberg também argumentaram que uma identidade lésbica específica, baseada nas categorizações da sexologia, foi criada no final do século XIX. Elas mostraram que, antes disso, britânicas e americanas de classe média, fossem casadas ou solteiras, engajariam-se rotineiramente em amizades passionais, românticas e frequentemente duradouras entre si; o que incluía constantes expressões de um amor pleno e dormir nos braços uma da outra, no mesmo travesseiro mesmo por uma vida inteira sem que isso fosse visto como algo suspeito. Havia algumas mulheres que, entretanto, ao longo do século XIX, que se enquadrariam no que viria a ser mais tarde o modelo sexológico, algumas que até se vestiam como homens e amavam mulheres, apesar da ausência do modelo sexológico. Uma mulher, por exemplo, do coméco do sec. XIX em Yorkshire, Ann Lister, se engajou em relações sexuais entusiásticas com vizinhas, até o ponto de contrair doenças venéreas, como conta em sus diários, e realmente concebia-se como “diferente”. Mas a existência desse tipo de mulher não parece ter influenciado a inocência com a qual amigas levavam suas relações, ou a aceitabilidade social do amor entre duas mulheres. Foi o surgimento da sexologia que tornou pública e estigmatizou a categoria de “diferença sexual”.
(…) A definição de Faderman de lesbianismo não dependia de contato genital. Ela diz “o amor entre mulheres foi primariamente um fenômeno sexual unicamente na literatura masculina”.

Os críticos de Faderman a acusaram de traição, de “dessexualisar” o lesbianismo ao incluir, em sua definição, mulheres que não tiveram contato genital no passado ou tivessem contato genital pouco frequente no presente. Para aquelas que veem o lesbianismo como diferença sexual,, amigas românicas claramente não qualificam. Mas para feministas pras quais escolher e amar mulheres é a base da identidade lésbica, elas qualificam sim. A conexão genital é difícil de provar. As lésbicas, ao longo da história, vão se provar bastante poucas, e a história das lésbicas começará apenas a partir do século XIX, se o modelo sexológico for adotado. A história da heterossexualdiade nunca foi limitada à comprovação do contato genital. A heterossexualidade é uma instituição política que não começou com a sexologia em 1890. Não é apenas uma das várias diversidades sexuais. A proposta da história das lésbicas é analisar a história da resistência feminina à heterossexualidade como instituição, em vez de apenas buscar mulheres que se enquadrem numa definição surgida no século XX e baseada na sexologia.

– retirado de Sheila Jeffreys, The Lesbian Heresy

HETEROREALIDADE

Heterorrealidade é a percepção de um mundo no qual a mulher existe sempre em relação ao homem (…), descreve uma situação criada pelas heterorrelações (…) que expressam a ampla gama de comunicações afetivas,sociais, políticas, econômicas, entre homens e mulheres (…) decretadas pelos homens. (Raymond, 1986).

Janice Raymond propõe que a cosmovisão dominante podia ser descrita como “heterorrealidade”. essa perspectiva apoia a ideia de que a mulher “existe sempre em relação a um homem” e,consequentemente, que as mulheres juntas são, de fato, mulheres sozinhas.

Esra heterorrealidade é criada pelo sistema dominante de heterorrelações, que se expressa em uma ampla gama de relações sociais, políticas e econômicas estabelecidas entre homens e mulheres. Por homens.

Paradoxalmente, as mulheres são usadas como instrumento para sustentar as heterorrelações, quando na verdade a realidade é homorrelacional, isto é, são as relações masculino-masculino que de fato determinam o curso da realidade nas esferas sociais, políticas e econômicas. O resultado é que a energia das mulheres se gasta em apoio às heterorrelações.

Na lógica das heterorrelações, as únicas relações para as mulheres são as relações homem-mulher. A heterorrealidade supõe que as mulheres não se relacionam ou não deveriam relacionar-se entre si. Raymond propõe que esta é a base da necessidade de uma filosofia do afeto feminino (o projeto de seu livro, A passion for friends ). As mulheres que têm sido monopolizadas pela manutenção de relações com homens agora devem refletir sobre o que significa para as mulheres moverem-se para além da separação heterorrelacional das mulheres, através de relações ginoafetivas. As relações ginoafetivas são relações de atração, influência, e movimento mulher-mulher. A amizade entre mulheres tem sua origem com as mulheres originais, que traçam seus próprios “começos desde o mais fundo de seu Ser e outras mulheres”. A amizade feminina é um contexto em que as mulheres podem recuperar sua integridadede seus Eus desintegrados e restaurar a ordem primordial da mulher nas relações das mulheres.

O ginoafeto é um contexto no qual as mulheres podem recordar as mulheres originais.

— Janice Raymond. A passion for friends:towards a Philosophy of female affection. Boston: Beacon Press, 1986.

ginoafeto

“A criação do amor entre mulheres foi uma tarefa necessária para a própria sobrevivência do feminismo. Se as mulheres não amarem a si mesmas e a outras mulheres, então elas não terão base na qual se identificar e rejeitar atrocidades contra mulheres. Para um movimento feminista a solidariedade do oprimido foi uma base necessária para a organização. Mas o amor entre mulheres foi sempre visto como constituinte de nada mais que uma versão de mulheres da camaradagem.
Raymond inventou o termo ‘Gyn/afeição’ para descrever o amor entre mulheres que é a fundação do feminismo. Gyn/afeição ‘conota a paixão que mulheres têm por mulheres, ou seja, a experiência de profunda atração pelo profundo e vital Ser e o movimento para outra mulher vital’ (p. 7). A política feminista precisava ser ‘baseada na amizade… Assim, o significado básico de Gyn/afeição é que o afeto de mulheres move, agita e desperta a outra para o poder completo’ (p. 9). Para muitas feministas a conclusão óbvia do amor entre mulheres era o lesbianismo (Radicalésbicas 1999). Raymond explica que embora seu conceito de Gyn/afeição seja não se limite ao lesbianismo, ela não entende porque alguma mulher que ama mulheres pararia o lesbianismo.”

— Sheila Jeffreys, Unpacking Queer Politics

SENALE, desaparição dos espaços de resistência lésbicos, relativização de identidades e separatismo

por Andressa Stefano

*SENALE: Seminário Nacional de Lésbicas, que ocorreu em abril de 2014 em Porto Alegre. Neste seminário foi enterrado o histórico espaço de lésbicas, responsável dentre outras coisas pela articulação das caminhadas lésbicas pelo país e pelo dia da Visibilidade Lésbica. No seminário foi votada a mudança do nome para Senalesbi.

Se o movimento feminista não é crítico do Poder, não é movimento: são funcionárias do Estado.

Lidia Falcón

A pós-modernidade que se infiltra no movimento feminista está despolitizando e descentralizando as pautas do movimento das mulheres. E uma das táticas disso, é a ressignificação do conceito de feminismo, ou uma ampliação do que seriam vários conceitos de “feminismos”. Temos que retomar o conceito de feminismo, e, a partir desse conceito, é inevitável que surjam diversas táticas de combate ao patriarcado. Essa abertura, relativiza e desestabiliza as forças que sempre pulsaram na base do movimento (ou seja, as próprias sujeitas, as lésbicas) e que lutam por pautas específicas e materiais, por termos realidades materiais e opressões materiais. A segunda onda feminista foi de onde mais saíram escritoras e teóricas, e, infelizmente, estão sendo apagadas à força pela academia engolida pela teoria queer, e, mais recentemente, o ativismo trans.Uma das consequências dessa relativização do conceito de feminismo, é também a relativização da identidade lésbica. Se para os liberais não existem estruturas, tudo é auto-identificação e relativismo, então qualquer um(a) pode ser lésbica, qualquer um pode ser mulher. Basta se “identificar” com essas categorias. O que eu vi no SENALE foi a materialidade do que antes só estava na academia e em ambientes restritos. Me assusta ver feministas marxistas e materialistas fechando com o conceito de “identidade de gênero” e mais surreal que isso só mesmo “falo lésbico”. Me pergunto se isso é uma tática partidária, ou se é falta de formação política da juventude feminista. Qualquer uma das duas, é extremamente preocupante e me faz temer o rumo que o feminismo está tomando enquanto movimento político, e quais pautas concretas, a curto, médio e longo prazo, nós queremos trazer para a realidade das mulheres lésbicas. Essa “união” e uma teórica “visibilidade das bissexuais” está desarticulando o único movimento que ainda tínhamos para falar sobre nós, sobre as nossas vivências, e nos organizamos politicamente enquanto sujeitas autônomas, de um feminismo revolucionário, e não mais um espaço colonizado, em que as lésbicas são secundarizadas e marginalizadas.Lésbicas existem muito antes do feminismo existir enquanto corrente teórica e movimento social. Lésbicas foram queimadas em praça pública, foram bruxas, foram mortas, foram estupradas. Lésbicas resistiram à heterossexualidade como regime político, foram marginalizadas, excluídas dos espaços públicos e políticos. Lésbicas feministas resistiram à apropriação e invisibilidade do movimento LGBT que sempre foram espaços majoritariamente masculinos que não nunca se propuseram à lutar para um desmantelamento da supremacia masculina, mas sim, uma reforma política para uma “convivência pacífica” entre as ditas “minorias sexuais” e uma manutenção das estruturas patriarcais que mantém as mulheres sob controle masculino. Os espaços gays neo-liberais sempre foram tóxicos para as lésbicas, sempre foram colonizadores e despreocupados com a nossa vulnerabilidade peculiar na sociedade feita por homens e para homens.Lésbicas radicais propuseram e propõe espaços de resistência apenas de lésbicas com o intuito de fortalecer a autonomia e a militância combativa e organizada. Separatismo é resistência. É tática neo-liberal nos fazer acreditar que temos que nos unir “a tudo e todos”. Gays não vão lutar pelas lésbicas. Gays estão preocupados em manter o status quo e manter o acesso aos nossos corpos mesmo que, supostamente, não tenham desejo pelos mesmos. Trans vão lutar pela identidade de gênero, pela aceitação dos seus nomes sociais perante o Estado, mas não vão lutar efetivamente pela desnaturalização da violência que acomete as fêmeas. Vejam que, dentro do ativismo trans, os homens trans não são destaque, e isso é só uma consequência de um movimento que privilegia o sexo masculino, assim como quase todo movimento social. Se não lutarmos pelas pautas que nos acometem, das quais somos protagonistas, querendo fazer maternagem com outros grupos vulneráveis, estes mesmos grupos não o farão pela gente. O movimento feminista é o único movimento em que existe uma coerção para acolher “à todxs”, como uma grande mãe que luta por todos aqueles que sofrem. O FEMinismo é para nós. Saio deste SENALE decepcionada, sentido falta de FEMINISMO LÉSBICO. O que é uma incoerência absurda em um seminário que tem um slogan de “lesbiandade e feminismos”. Proponho uma união entre as sapatas, em pensarmos em como construirmos de forma autônoma e efetiva um novo espaço de articulação. Mais uma vez, nós estamos saindo dos espaços, enquanto todo o resto se pendura no braço movimento lésbico.