Margarita Pisano
Desde a Instituição, a análise de gênero se legitimou e se neutralizou, despolitizando o desequilíbrio perverso – entre mulheres e homens – em que o sistema se sustém e que nos está conduzindo, vertiginosamente, em direção à desumanização. O gênero situa o feminino e o masculino em uma relação assimétrica, sem transpôr a linha crítica do desmonte de seus valores e privilégios.
Essa macrocultura não se modifica com as demandas de igualdade dentro de si mesma e/ou na exaltação das diferenças, mas responde a uma lógica de superioridades-discriminações e à cegueira do orgulho de sua história e sua cultura.
As reivindicações não geram ideias diferentes das permanentemente rejuvenescidas pela masculinidade: a igualdade, o respeito, a tolerância, a liberdade, são conceitos elaborados desde o corpo histórico homem; suas reivindicações partem de uma história legitimada, a das mulheres, não. A liberdade vivenciada por um corpo mulher, domesticado e com potencialidades reprodutivas, é radicalmente distinta a do homem.
As mulheres foram acedendo à masculinidade – como fêmeas – e isso se confunde com mudanças culturais, quando só são de costumes. Penso que a liberdade, a igualdade, inclusive o amor, são boas ideias que, envolvidas em papel de presente, se transformam nas mais eficientes para perverter o desejo de autonomia e de verdadeira liberdade de cada ser humana.
Desde o lugar político-simbólico em que me situo, não acredito nesse sistema e em sua capacidade de mudança civilizatória, ao contrário, acredito que ele é capaz de gerar cada vez mais violência, como consequência de sua lógica, encarnada em um só corpo sexuado, histórico, válido. É questão de olhar… e ver… onde estamos e o que fazemos como humanidade. A masculinidade contém a feminilidade, é uma só ideologia e construto cultural. Esse olhar é crucial para entender a macrocultura vigente desde um lugar menos enganchado e contaminado por ela.
Nessa masculinidade/feminilidade, a que pensa, faz e ordena é a masculinidade. O coletivo de homens pensou e instalou as mulheres dentro da feminilidade. No entanto, o feminino não somos as mulheres, apesar de que somente nós tenhamos a experiência submetida da feminilidade. Trata-se de uma construção social, política, econômica e emocional desde um corpo alheio. A feminilidade não tem autonomia e nem um corpo pensado-pensante, valorado desde si mesmo: obedece quem pensa e assume aberrantemente a cultura masculinista como própria.
Se entendermos o monômio simbiótico do masculino-femenino dessa maneira, não é estranho que hoje em dia ou homens queiram recuperar o que lhes parece desejável na feminilidade, criada por eles e para eles. Dessa maneira, transitam de um patriarcado forte e duro para uma masculinidade mais plena e suavizadora de suas exigências e, sobretudo, de suas responsabilidades atuais e heróicas. Eu chamo a isso “el triunfo de la masculinidad”.
Se analisarmos desde AFORA, o último filme de Almodóvar, Hable con ella (prêmio Oscar), veremos essa projeção: os homens choram, cuidam, sentem, enquanto as mulheres de descerebram, seus corpos aparecem mudos, manipuláveis e violáveis; máxima realização da masculinidade/feminilidade, como expressão de sua grande fantasia.
Reivindicar a capacidade de emocionar-se e chorar, como se fosse o feminino em um corpo homem, me parece contaminado pela contraleitura de que uma mulher inteligente, ativa e pensante tem mais desenvolvida sua parte masculina (a cabeça). Ou seja, pensar, criar e fazer política, que são coisas constitutivas do humano, estão apropriadas pela masculinidade. Portanto, a operação de desqualificação e de submetimento das mulheres já está em marcha, e é mais profunda do que aparenta, mesmo quando a masculinidade reivindique parte da feminilidade para si; desse lugar simbólico, tira e põe o que lhe convém social, política e economicamente.
A operação feita pela masculinidade patriarcal – e que continua ressignificando a masculinidade moderna – foi deixar o corpo cíclico das mulheres atrapado na simbólica natureza-animalidade, despojando-o da criatividade intelectual humana, mas enfatizando sua intuição, seu amor-entrega e emocionalidade (descerebrando-o). Em contrapartida, o corpo homem, que também é natureza, foi transformado em pensante, falante e capaz de criar símbolos e valores, instalando-o em um protegido e vantajoso orgulho.
Por isso, há muitas diferenças entre desejar parte da feminilidade desde o lugar do poder (poder escolher feminilidades) e resistir a ela desde o lugar do dominado, como o fizeram muitas mulheres durante séculos, servindo os homens e sendo a força de reposição e reserva de seu sistema cultural. Não resgato Nada da feminilidade: o chorar não é um privilégio, a comodidade do feminino, para as mulheres, esconde escravidão; para os homens, representa liberdade.